A Felicidade das Coisas
O cotidiano em prosa
Por Pedro Mesquita
Os filmes da produtora mineira Filmes de Plástico compartilham assumidamente entre si a disposição de falar sobre o cotidiano. Thiago Macêdo Correia, um de seus fundadores, colocou-o em palavras: “nós estamos falando de vida, de seres humanos, de dramas que estamos vivendo. Então acho que funciona porque é verdade”. Esses filmes costumam rejeitar o artificialismo comumente encontrado no cinema mainstream — seja ele nacional, seja internacional — e reivindicam uma abordagem realista no tratamento de questões reais.
O realismo que encontramos em “A Felicidade das Coisas” se dá por meio da transparência da câmera com relação ao que ela filma. No filme de Thais Fujinaga, não sentimos a presença da câmera como um objeto que refrata a realidade, que a transfigura; não sentimos o estilo pessoal da autora intervindo na matéria filmada. Pelo contrário: verifica-se a vontade de filmar as personagens com o máximo de clareza possível, tornando a câmera quase “invisível” no processo. Se desejarmos retomar a dicotomia do “cinema de prosa” versus “cinema de poesia” estabelecida por Pier Paolo Pasolini — segundo a qual o primeiro seria um tipo de cinema que não chama atenção para si mesmo, enquanto o segundo seria um tipo de cinema que chama atenção para si mesmo; para a marca do autor; para a presença da câmera —, então “A Felicidade das Coisas” está, junto de grande parte dos filmes da produtora mineira, plenamente no domínio do cinema de prosa.
Quais seriam os fatos do cotidiano narrados aqui? Bom, o filme conta a história de uma família habitante do litoral paulista. Essa não é, porém, uma família de composição tradicional: Paula (Patrícia Saravy) é mãe de dois filhos (Messias Góis, Lavínia Castelari), mas não conta com a ajuda do marido, sempre ausente, para cuidar deles. Quem a ampara é a sua própria mãe (Magali Biff), avó dos meninos. Paula tem o sonho de construir uma piscina em sua casa e passará todo o filme tentando realizá-lo; no entanto, diversos percalços se apresentam a ela ao longo da narrativa e o sonho começa a parecer cada vez mais inatingível.
Que o filme tenha uma história para contar não significa que essa seja a sua principal preocupação. A montagem de “A Felicidade das Coisas” não é aquela montagem linear que encadeia os acontecimentos da narrativa, um plano “chamando” o próximo. No lugar disso, o filme se desenrola sob um ritmo lento; abundam os planos que não têm necessariamente uma função narrativa, mas uma função atrativa, imersiva. O filme privilegia a encenação de planos que capturam gestos espontâneos, como os das crianças brincando no quintal, brincando de ping-pong com a avó… ou mesmo aqueles em que as personagens estão sentadas sem nada de muito interessante a fazer, como que para nos dizer que a vida é feita de muito mais do que uma narrativa perfeitamente coesa e linear. Esses planos de cunho contemplativo — que remetem aos primórdios do cinema — dão ao filme alguns de seus melhores momentos, com a breve objeção de que não conseguem proporcionar o mesmo grau de espontaneidade dos Lumière, precisamente por se tratar de um filme ficcional previamente roteirizado.
É talvez a despeito de sua própria vontade que o filme precise se organizar numa narrativa linear, pois é aí que mora a principal fraqueza de “A Felicidade das Coisas”. Se o filme acerta quando se atém ao que nele há de superficial (os momentos de tédio, as brincadeiras descompromissadas etc), ele peca quando pretende ir além da superfície e se aprofundar na psicologia das personagens. Aqui, encontramos muitos lugares-comuns e símbolos óbvios: a piscina como um oásis em meio à existência tediosa de Paula e sua família; a construção da piscina como realização do sonho do homem de obter a sua propriedade privada (não à toa Paula tanto reluta em desistir da ideia da piscina e realizar a assinatura do clube, como pedem as crianças, pois o que interessa é construir algo próprio de si, nos limites de sua residência; não à toa também ela se incomoda com o homem que realiza a sua pesca nos limites do seu lote). Encontramos também diálogos excessivamente informativos, que contrastam com a espontaneidade e a sutileza de outrora: as brigas com o marido, o “eu não aguento mais!” do final…
Outro sintoma dessa dificuldade do filme em se adequar a uma estrutura narrativa é a mudança de foco que ocorre na passagem para o ato final: o que era até então um filme protagonizado por Paula torna-se, a partir do seu terço final, um coming of age protagonizado por seu filho, Guto; de modo que nenhuma dessas duas partes tem o seu potencial devidamente realizado.
“A Felicidade das Coisas” tem seus prazeres, mas é estruturalmente falho: alguns momentos individuais se destacam enquanto o todo não se sustenta. Afinal, mesmo os cineastas de prosa não podem prescindir de um trabalho minucioso sobre a forma e sobre a estrutura dos filmes.