Curta Paranagua 2024

A Fantástica Fábrica de Chocolate

Tim Burton e a incrível estética de uma estranheza possível

Por Fabricio Duque

A Fantástica Fábrica de Chocolate

Quando o livro “Charlie e a Fábrica de Chocolate” foi lançado em 1964, do autor britânico, nascido no País de Gales, Roald Dahl, logo se tornou um clássico da literatura infantil, especialmente por trazer a figura de Willy Wonka, fictício personagem excêntrico e com um que de psicopatia cruel, bem à moda da bruxa do conto de fadas “João e Maria”. A obra do escritor que também escreveu outros sucessos, como “Os Gremlins”, Matilda”, O Bom Gigante Amigo”, “O Fantástico Sr. Raposo”, buscava ser uma fábula de crítica social, não só por abordar a segregação de classes entre pobres vulneráveis e ricos poderosos, mas principalmente servir como uma auto-ajuda de mensagem reeducadora do retorno aos mais básicos valores da família, à la “Mary Poppins”, visto que esses filhos, seres pequenos tiranos (quem nunca lembrou de Cartman e sua mãe do seriado politicamente incorreto “South Park”?), não aceitavam nenhum limite da criação de seus pais. 

E assim, inevitavelmente, o cinema, ávido por novas e interessantes histórias, não poderia ficar de fora dessa fábrica, produzindo filmes com diferentes sabores, uns mais doces e outros mais amargos, cada um conduzido por sua época, mas nenhum sem o devido aprofundamento de camadas metafóricas, filosofais e existenciais sobre a condição humana enquanto indivíduo social. Em 30 de junho de 1971, o diretor novaiorquino Mel Stuart lança a primeira versão de “A Fantástica Fábrica de Chocolate”, com os atores Gene Wilder e Peter Ostrum, neste, com números musicais  e  tom narrativo mais impaciente, mais defensivo e de educação formal das personagens na hora de expressar suas emoções (quase teatrais, tendendo às vezes ao pastelão), e com a característica típica da geração setentista – uma extravagância de cores que representava a desmedida-incondicional felicidade visual (advinda do movimento hippie), a questão principal evoca a eterna guerra da simplicidade-humanidade versus o gigante do consumismo, pulante e redefinidor do novo mundo, com seus contratos e processos respaldados por lei. Com orçamento de apenas 3 milhões de dólares e indicações ao Oscar e ao Globo de Ouro, esse clássico poderia ser uma obra definida, tanto que em 2017, William Hanna e Joseph Barbera criaram a animação “Tom e Jerry: A Fantástica Fábrica de Chocolates”, reconstituindo quadro-a-quadro a versão anterior, só que com a inclusão da dupla de gato e rato, que entrou para ajudar Charlie a encontrar o cupom dourado. 

Sim, como foi dito, o cult poderia ter continuado intocável, se não fosse a versão de 2005 de Tim Burton, realizador estadunidense conhecido por imprimir uma atmosfera da estranheza, naturalmente exótica e orgânica em suas obras, muita influenciada pelo escritor Edgar Allan Poe. Para que possamos entender, essa intrínseca característica não está somente no artifício surreal e de fantasia possível (pelo sensorial) empregado em suas histórias, e sim no ponto focal de transformar a própria realidade em uma fábula metafísica e de genuína morbidez existencial, tudo para esmiuçar os cognitivos meandros-sinapses da condição humana em ambientes desconfortáveis. Burton, assim como Roald Dahl, quer potenciar na audiência o mais básico do que se está por trás da proteção social. Dessa forma, A Fantástica Fábrica de Chocolate” do diretor californiano é acima de tudo uma terapia de choque. Uma possibilidade do espectador analisar pelo viés da psicanálise os tão incômodos reencontros com a escuridão que cada um traz na própria alma. Burton levanta o tapete e expõe a poeira, usa (e abusa sem limites) suas personagens (mais melancólicas e acentuadas na decadência) – tipos de uma sociedade engessada por vontades individuais (condicionadas do meio em que vivem) e pela necessidade-obrigação de suportar seus semelhantes, que mesmo sem se dar conta retroalimentam a máxima cunhada por Jean-Paul Sartre de que “O inferno são os outros”. 

Nesta A Fantástica Fábrica de Chocolate”, o diretor inerva sua já tradicional estética da linguagem gótica e sombria com a inserção de outros pontos molares, a questão da família, particularmente a paterna, por exemplo, que atrapalha a criatividade. Burton escala o ator Johnny Depp e o convida a vivenciar um Willy Wonka mais andrógeno, mais “esquisito”, mais bizarro, mais modernizado ao gênero neutro da sexualidade, mais permissivo à vulnerabilidade (faz inclusive psicanálise) e bem mais intolerante com as crianças “premiadas” e seus pais soberbos. Ele tem fobia de família. Mas quando seus planos estão rumo ao resultado esperado, eis que surge um sorriso cínico, enganador e prazeroso. Ao passar por essa parte, o espectador pode referenciar ao seriado South Park (o mesmo citado anteriormente neste texto), no episódio em que a mãe de Cartman tenta domá-lo com a única opção de um adestrador de cães. Sim, Willy Wonka resolve intervir quando os pais não mais conseguem, muito também motivado pela dose amarga do passado conturbado com seu pai (de não aceitar controle e flexibilidade). E o mais incrível é que nós desejamos cada um dos castigos desferidos. Burton também adaptou a versão anterior com a figura do pai de Charlie (o ator infantil Freddie Highmore), que aqui é vivo e entra em conflito com seu emprego. O trabalho manual versus a robotização do serviço, que realiza tarefas mais rápidas, mais precisas e mais econômicas. Sim, são camadas e camadas. 

Há outro elemento alegórico que Tim Burton não deixou de inferir aqui. Na numerologia, o número cinco (a quantidade de cupons dourados – convite de entrada para conhecer a fabrica de chocolate mais famosa do mundo) representa o símbolo do Homem e do Universo, da ordem, da perfeição e dos cinco sentidos. É o próprio fluxo da vida. Do equilíbrio da invenção. Do propósito da nossa existência. De reiterar que o ser humano acontece pela vontade de inventar novas necessidades. É como Wonka passa seus dias: testando vontades e explorando evoluções (embrenhando-se na terra perdida e distante dos pequenos homenzinhos Oompa-Loompas – seres simples confiáveis que não roubarão as fórmulas – para descobrir novos sabores), quase todas altruístas (porque não só oferece o prazer dos doces, mas também pensa na questão social de combater a fome do mundo, por exemplo).

A Fantástica Fábrica de Chocolate” é imperdível. Se na primeira versão, as pessoas estavam assustadas com a chegada do “novo diferente” (e ter que aceitar “novas formas” comportamentais – de rever os limites armamentistas e/ou a obesidade e/ou a competição destrutiva e/ou os desmandos “cortem a cabeça” de crianças à deriva em suas crenças de poder, por exemplo), nesta obra, a questão focal é a alienação. Uma crítica a esta nova geração que se aprofunda no vazio, no casual, no efêmero, no popular. Isso pode até explicar o que nós vivenciamos agora: não há mais tempo para sorver e se deliciar com os filmes, tampouco de eternizar suas obras. Quando Tim Burton brinca com a possibilidade cúmplice e fantasiosa de se vingar desses “pestinhas” e ainda alfinetar características típicas geográficas (Alemanha, Inglaterra, Estados Unidos – e Paraguai sendo modificado por Rússia), nós aplaudimos, porque sentimos a esperança no resgate dos princípios fundamentais que perdemos ao se relacionar com meios tóxicos e hipócritas. De acreditar na verdade sincera do falar e do agir (e não “entre dentes”). Tudo é porque queremos nossa cinefilia de volta, que, sim, era construída no tempo. 

Em A Fantástica Fábrica de Chocolate”, com roteiro de John August (que também escreveu “Peixe Grande e Suas Histórias Maravilhosas”, outro filme do diretor) e música de Danny Elfman, Tim Burton, que evitou usar efeitos digitais, tanto quanto possível, possui a mais fantástica das maestrias: a simplicidade em buscar o elemento puro humanizado de suas personagens. Ninguém é totalmente mau ou bom. Há uma “cachoeira” imensa e de moralidade racional-pragmática. O ator Freddie Highmore, que interpretou Charlie, disse na apresentação do filme na época: “Eu achei que era melhor esperar até mais tarde para assistir à obra anterior, porque eu pensei que eu deveria criar meu Charlie sozinho. Acho que o filme original é bom, mas eu acho que é melhor agora, porque Charlie é mantido mais puro”.

Outra fofoca pululou durante o lançamento: a comparação entre Willy Wonka e Michael Jackson. O próprio Burton veio à público e disse em tom de brincadeira: “Aqui está o negócio. Há uma grande diferença: Michael Jackson gosta de crianças, Willy Wonka não pode suportá-los. Para mim, isso é uma diferença enorme”. E para concluir, se precisarmos definir o cinema de Tim Burton em poucas palavras, a resposta seria que ele faz obras autorais, conservando o amadorismo (à la “O Mágico de Oz”) em um alto nível de apuro técnico estético, como por exemplo, trabalhar sempre com Helena Bonham Carter. E acima de tudo, nunca, nunca, alterar nada no time que está ganhando. Até porque nas palavras do sábio e puro Forrest Gump: “a vida é como uma caixa de chocolates, você nunca sabe o que vai encontrar.”

O texto foi escrito exclusivamente para o catálogo da Mostra O Cinema de Tim Burton, de curadoria de Breno Lira Gomes, que aconteceu no Centro Cultural Banco do Brasil. 

5 Nota do Crítico 5 1

Conteúdo Adicional

Pix Vertentes do Cinema

Deixe uma resposta