A Colônia
A realidade entre o presente e a história
Por Vitor Velloso
Durante a Mostra de Tiradentes 2022
“A Colônia” é uma obra que transita entre a ficção e o documentário à procura de referências sociais e históricas para compreender a realidade de seu território. A direção de Mozart Freire e Virginia Pinho é hábil na concepção de uma linguagem que não se desprende da materialidade, sendo capaz de dialogar entre os diferentes tempos a partir dos lugares, da exposição da especulação e dos depoimentos de quem passou pela segregação promovida pelo Estado no primeiro momento. Tais falas, ora acontecem no formato de entrevista, ora como um diálogo natural entre os personagens. Essa variação na abordagem, faz com que o projeto capilarize suas discussões para uma mesma realidade, mesmo que partindo de dispositivos distintos.
Se por um lado poderia cair em um certo maniqueísmo que utiliza da história de seus personagens para ajudar a compor uma ficção de maneira unilateral, o que acontece com “A Colônia” é o oposto, os elementos que fogem do documentário propriamente dito, servem para criar uma representação de um cotidiano que não esteja fixo à formalidade de depoimentos e entrevistas. Dessa forma, o filme nos apresenta os problemas históricos vividos pela população do bairro Antônio Justa, em Maracanaú (CE), enquanto dialoga com uma narrativa que conflitua as perspectivas das gerações ali envolvidas e apresenta questões enfrentadas pelos novos moradores. Essa estrutura faz com que as duas realidades sejam introduzidas de maneira conjunta, sem um paralelo que divida as representações. Em contraste, com exceção de alguns personagens específicos, como a médica e o entregador de galão de água, o longa possui alguma dificuldade de naturalizar esses movimentos e a montagem passa a trabalhar a partir das temáticas e dos distintos tempos de suas cenas.
Tal questão expõe uma fragilidade da obra, a justaposição de seus diferentes temas a serem apresentados e a forma que encontra para organizar a memória, a história, o presente e as lutas políticas por dignidade. Porém, é nessa confusão de assuntos e tempos que os diretores conseguem algumas maneiras econômicas de apresentar os conflitos, um exemplo disso é a breve apresentação feita pela médica, que explica algumas das fotografias gerais que estão à exposição na parede do Pavilhão, além da visita guiada que mostra os espaços que o Estado procura fechar. Além disso, parte das reivindicações do povo de Antônio Justa é para que a possível transição seja realizada de maneira humanizada, sem destruir a vida dos residentes. Está claro que essas figuras da especulação, são caricaturas de um projeto que atinge o tema da propriedade, sobretudo que quer “gourmetizar”, na própria expressão de uma personagem, parte do bairro.
O material de arquivo que abre a projeção, é uma introdução histórica do contexto daquele território, não por acaso “A Colônia” trabalha tanto com as diferentes gerações e suas concepções distintas da resistência. O rap como uma manifestação da precariedade, o afeto reconstruindo os significados e o fantasma do passado servindo de motivação para fazer acontecer de maneira diferente, melhor e mais comunitária. A hanseníase deixou marcas nas pessoas, mas o que o filme compreende bem é que as feridas mais visíveis estão na aliança do Estado com as investidas liberais e a especulação. Não por acaso Mozart Freire e Virginia Pinho conseguem criar belos planos que acompanham esse cotidiano, sem engessar a narrativa e são capazes de demonstrar as proximidades das relações com simples gestos, como acompanhar a bicicleta de alguns personagens com a leveza de seus movimentos.
“A Colônia” é outra demonstração de uma Mostra Aurora que consegue respirar para longe de alguns formalismos estruturalistas e reforço frágil da “volatilidade” das relações, é um filme que denuncia o subdesenvolvimento com a dependência de um capital que se pavoneia na ausência do Estado, com os fantasmas do passado assombrando cada esquina de um sonho um dia ser melhor. É uma síntese nacional com as particularidades regionais. As projeções são inúmeras.