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A Besta

Imagem-Cristal

Por João Lanari Bo

Festival de Veneza 2023

A Besta

A Besta”, longa de 2023 dirigido por Bertrand Bonello, começa com uma audition com fundo verde da atriz Léa Seydoux, em uma cena de pânico – ela surpreende a “besta” e solta um grito de gelar o sangue. Seria para o papel de Gabrielle, pianista e concertista no início do século 20, em Paris? Ou seria 2044, onde Gabrielle força o apagamento do seu DNA? Ou ainda, seria 2014, em que cuida de uma mansão em Los Angeles, cujo proprietário está em viagem, e torna-se objeto do desejo psicótico de um “incel” – acrônimo de involuntary celibates, “celibatários involuntários”? Há que se notar, no meio disso tudo, que o filme é vagamente inspirado em uma novela de Henry James, “A Besta na Selva”, cujo personagem vive obcecado pela sensação de que algo trágico vai acontecer com ele.

São três ou quatro dimensões de tempo, se contarmos a audition, que configuram “A Besta” como um filme-cristal, ou uma imagem-cristal, conceito que o filósofo Gilles Deleuze inventou para analisar os filmes que gostava. Seria obviamente uma tacada pretensiosa esmiuçar aqui uma ideia complexa como essa. Para resumir, nada melhor do que a Inteligência Artificial – perguntando ao insigne ChatGPT, o preferido de nove entre dez estudantes universitários, sobre o que é afinal de contas imagem-cristal, obteve-se esse precioso parágrafo:

A metáfora do cristal remete à ideia de uma estrutura complexa e multifacetada, que não se limita à percepção superficial ou imediata, mas que apresenta diversas dimensões simultâneas. Em um filme, por exemplo, a imagem-cristal poderia ilustrar momentos de desdobramento do tempo, onde várias possibilidades e realidades coabitam o mesmo espaço da tela.

Trata-se de uma imagem que não é unidimensional ou linear, mas que traz uma complexidade interna de tempos e realidades entrelaçados. Assim como, por exemplo, a luz passa e reflete em um cristal, criando uma multiplicidade de perspectivas. Esta pode ser uma boa maneira de abordar “A Besta”, modo talvez um pouco cerebral demais, por certo, mas que cai como uma luva para apreciar a obra de Bonello.

Obra que Deleuze não viu – mas viu (e admirou) os filmes de Alain Resnais, “Ano passado em Marienbad”, sofisticada e hermética sobreposição de temporalidades de um romance amoroso, e, sobretudo, “Eu te amo, eu te amo”, de 1968, cuja sinopse no IMDb é esclarecedora:

Após tentar o suicídio, Claude é recrutado para uma experiência de viagem no tempo, mas, quando a máquina fica sem fio, ele pode ficar preso em suas memórias.

Para o pensador francês, cinéfilo de carteirinha, Resnais e Orson Welles foram os cineastas que melhor encararam o desafio de construir uma imagem-tempo direta no cinema. Eles foram capazes de passar por imagens-cristal, afirmou em um dos seus seminários, citando o filme de 1968. E Bonello, qual é o filme que mais gosta de Resnais, tal como menciona em entrevistas quando é chamado a listar influências em sua carreira?

“Eu te amo, eu te amo”, descrito, em suas palavras, da seguinte forma:

É tão emocionante, e a ideia de voltar ao passado e ter esse quebra-cabeça — eu adoro filmes que são feitos como um quebra-cabeça, e aos poucos você tem uma visão geral. Às vezes, não tudo, mas…

É, portanto, num quebra-cabeça que o espectador é convidado a imergir ao assistir “A Besta”. No primeiro movimento, um cenário de época impecável na cenografia e figurinos, Gabrielle percorre um salão belle-époque, onde cruza com Louis Lewanski (George MacKay), admirador que a conheceu alguns anos antes, não se sabe quantos – não importa. O que importa é que ela confessou a ele, um estranho, seu medo terrível de uma tragédia perturbadora e iminente (como o personagem de Henry James). Algo que iria impregnar-se em seu DNA, com certeza – e aconteceu, foi a grande inundação de Paris em 1910, quando o nível das águas do Sena subiu oito metros acima do normal.

Uma cena memorável de “A Besta” mostra Gabrielle e Louis na fábrica de bonecas do marido dela: um incêndio devastador, sequela da inundação, destrói as instalações e as indefesas bonecas (a cena homenageia o curta de Polanski, “Lampa”, de 1959). Corta para outra cena memorável: Gabrielle, diante de Louis, exemplifica com a própria expressão facial o que seria o visual “neutro” das bonecas – a transição de emoções de seu rosto funciona como imagem-cristal, síntese da estratégia narrativa do filme. Méritos para a interpretação de Léa Seydoux.

E méritos também para George MacKay, quando transmuta sua persona para o incel implacável – inspirado em um personagem real, o mass-murderer Elliot Rodger. É o segundo movimento, em 2014.

Apagar o DNA pode ser a solução para eliminar traumas passados – e resolver o quebra-cabeça.

4 Nota do Crítico 5 1

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