1982
Os peçonhentos
Por Vitor Velloso
Durante o Festival É Tudo Verdade 2020
A guerra e a mídia são poderosas aliadas do poder imperialista, quando lhe convém, faz-se propaganda para o lado que interessa à situação. A TV é a máxima do controle midiático em torno das particularidades de um controle das notícias que são dadas, principalmente se as emissoras estiverem ao lado do Estado. O caso é fértil para o debate, pois a ditadura militar argentina seguia seu curso, mas a retomada de controle nas Malvinas, em “1982″ (2019), tornou o apoio popular e midiático a favor do “triunfo” militar. Uma ova. Mao cita uma frase de um indivíduo que proferiu no Tchempao: Levantem o vosso punho esquerdo para abater o imperialismo e o direito para abater o Partido Comunista. A burguesia argentina fez o mesmo, até onde lhe convém, com nomes trocados e ideologia mutante.
Lucas Gallo que assina a direção, tenta compreender os meandros dessa vertente ufanista, que vende a imagem de um país unido, como quem remonta um sonho latino, para declarar apoio aos militares contra a potência européia. No fim, não é difícil reconhecer que há um hibridismo ideológico que caminha de acordo com seus interesses particulares. E o documentário consegue fazer isso com maestria, pois não recorre à parábolas, narrações etc apenas utiliza parte da programação da TV argentina de 1982, em especial o “60 minutos” e reconstrói todo um imaginário, dentro de um contexto dado em textos no início da exibição do filme. A montagem é absolutamente eficaz em concatenar o falseamento do discurso através da encenação que é feita. Uma campanha com todo o veneno da burguesia. A classe peçonhenta vislumbrava um rompimento político, queria sua fatia da participação.
O movimento interessante é não tornar o assunto da ditadura uma matéria de crítica, é necessário compreender uma geração pós-68, que viu seus direitos privados, jamais os coletivos, serem dados pelos agentes do capitalismo, o neoliberalismo ganha seus contornos mais acentuados e a alienação nos países subdesenvolvidos, vítimas de ditaduras duríssimas, é apadrinhada pela gangrena televisiva. O inimigo possui rosto e forma quando a mídia constrói essa demanda, do contrário, a situação está sempre a melhorar, o pleno desenvolvimento dessa classe tacanha e medíocre, que apela para a manipulação intelectual por deter o poder da comunicação.
“1982” consegue transportar a TV dos anos 80 como linguagem para seu filme. Seus cortes são precisos, atingem propriamente aquilo que deseja. Sem dizer palavra, consegue organizar suas ideias de maneira cirúrgica, pois desconstrói a imagem da burguesia, por ela mesma, deixando-os se esgotarem. A podridão passa ao expositivo, a cortina de fumaça é a deixa necessária para o bote dos infelizes, o povo é vitimado, uma guerra explode, o “criança esperança” da guerra é aberto. Não há escrúpulos, toda a mobilização que é feita em torno do apoio ao militares é de um nacionalismo importado, que vemos atualmente no Brasil. Esse ufanismo canhestro, abestalhado, atrapalhado, que defende um símbolo que não desconhece, uma História que ignora.
E é onde a montagem consegue construir as nuances com a paciência devida, pois se utiliza da linguagem da TV, com suas transições, para ir construindo o quebra-cabeça alienador que era a sociedade argentina naquele momento, ou pelo menos aquela que a mídia retratava. O filme vai colocando argamassa nesse balaio de material de arquivo, onde sua triagem parece ser feita no que há de mais tacanho e ignóbil. E assim como “O Processo” (que não usa arquivo), faz a imagem da decadência reacionária ir ganhando espaço sob o nacionalismo importado. Essa mesma ideologia de mercado, ideológica, que transformou o séc. XXI na máquina de retrocesso que é.
“1982” é um retrato de uma sociedade desmotivada e atada, que encontra na violência uma forma de manifestação de apoio ao seu país, sem reconhecer os algozes que aplaudem. Do outro lado, a mídia cria o terreno perfeito para o bote da burguesia na decadência no governo, pois compreendem que toda essa movimentação irá cessar e, em algum momento, o poder estará vago. Mas para isso, é necessário criar uma cortina de fumaça absolutamente ágil em atender um populismo midiático que renovará as forças dessa burguesia.
A descrição nos lembra o hoje, onde a emissora assume o posto de vigilante pois reconhece que a decadência reacionária do gado descerebrado chegará ao fim. As cobras se digladiam.