1968 – Um Ano na Vida
Querido diário, em 1968...
Por Pedro Sales
Durante o Festival É Tudo Verdade 2023
1968 foi um daqueles anos marcantes. Na política, líderes como Martin Luther King Jr. e Bobby Kennedy foram assassinados. No Brasil, o ditador Costa e Silva decretou o AI-5, minando os direitos políticos já escassos e consolidando a censura. Do outro lado do mundo, houve a Guerra do Vietnã. No esporte, a Cidade do México foi palco das Olimpíadas. Na ocasião, os atletas estadunidenses Tommie Smith e John Carlos estenderam os punhos para cima no pódio, simbolizando a saudação “Black Power”. Na música, os Beatles lançaram o “Álbum Branco”, os Stones, o “Beggar’s Banquet”, e a Califórnia foi tomada pela psicodelia de Jefferson Airplane e Grateful Dead. No Brasil, é lançado o disco “Tropicália ou Panis et Circensis“, com Caetano, Gil, Tom Zé, Rita Lee, Nara Leão e Gal. No cinema, Kubrick realizou “2001- Uma Odisseia no Espaço“, Sganzerla ganha prêmios com “O Bandido da Luz Vermelha”, e Glauber vence melhor direção em Cannes com “O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro”. Em meio a tudo isso, estava uma mulher, Silvia Escorel, personagem central de “1968- Um Ano na Vida“, dirigido por seu irmão, o cineasta e montador Eduardo Escorel.
A dupla estrutura o documentário em forma de um relato de natureza extremamente íntima e pessoal. Silvia relembra, ou melhor, tenta lembrar dos fatos de 1968 e como eles a afetaram. A narração conta com o auxílio de anotações do diário “Lost“, da própria Silvia. Toda a pessoalidade imposta em tela dá a sensação de que o longa poderia ser uma espécie de filme caseiro. Não é difícil imaginar o quintal cheio de amigos e familiares esperando a projeção do novo filme de Eduardo. Todos ansiosos para relembrarem dos fatos juntos da narradora e, vez ou outra, apontar para a tela quando se reconhecessem. Outro elemento que corrobora para a ideia é que os recursos de oralidade dão à obra um tom de conversa. Silvia fala com Eduardo, uma irmã conversa com o irmão. Portanto, o intimismo do documentário depende muito do fator identificação.
Esse, por sua vez, é um problema em “1968 – Um Ano na Vida“. Silvia se denomina como “filhinha de papai”, com uma rotina “voltada para o próprio umbigo”. Após o fim do casamento, ela volta para a casa dos pais e lida com toda efervescência cultural do final dos anos 60. Ninguém tem culpa de ter um pai diplomata, isso não se escolhe. Mas nem isso impede que o filho procure alternativas ao paternalismo burguês. Silvia se inseriu na cultura hippie, acreditava veementemente que os astros regeriam um novo tempo, a Era de Aquário. E tentou expandir suas capacidades em viagens lisérgicas, as quais, quando citadas no documentário, tem ao fundo o som de música indiana e uma saturação nas cores. Dessa forma, o que se analisa é como a cultura sessentista a impactou. Por outro lado, quando ela exerce o papel central não é tão interessante assim.
Na realidade, poucas vezes Silvia é de fato protagonista das ações, algumas são o divórcio, a participação na passeata dos 100 mil e sua função como continuísta em “Macunaíma”, que inclusive foi montado por Eduardo Escorel. Sim, Silvia também queria seu lugar no cinema, como seus irmãos Eduardo e Lauro, diretor de fotografia de longas como “São Bernardo” e “Eles Não Usam Black Tie“. Na maior parte do tempo, os efeitos a atingem de forma tangencial, ela é mera observadora dos acontecimentos. São seus amigos que vão presos, seus irmãos vão detidos ao DOPS. Ela se preocupa, teme pelos que ama, mas não participa ativamente desses eventos, ela estava lendo I-Ching e fazendo recortes da Revista Life para seu diário. Embora prevaleça a percepção de que há pouco interesse nos dilemas pessoais da narradora, existem momentos de extrema sinceridade que atraem o espectador. Em primeiro lugar, o uso do diário como recurso narrativo é uma abertura corajosa diante da câmera, é uma espécie de confiança. As folhas quadriculadas com recortes de jornais e revistas – quase sempre em inglês, bom frisar – revelam muito do que aquela jovem pensava mas não conseguia externar. Talvez, as ilustrações representem isso de forma melhor, puramente visual.
“1968 – Um Ano na Vida” estabelece uma reflexão íntima e pessoal dos efeitos de 1968 e seus acontecimentos em uma jovem mulher recém desquitada. Eduardo abre o galpão de memórias de sua irmã para relembrar dos fatos que aconteceram no ano, seguindo a linha cronológica da carta que Silvia endereçou a ele 54 anos atrás. Para isso, o cineasta lança mão de imagens de arquivo, como das manifestações e do assassinato de Martin Luther King Jr. Porém, também emprega o uso do arquivo pessoal, filmagens de quando os três moravam nos EUA, ainda crianças, e as numerosas fotos de sua irmã, dos amigos e da família. A obra só perde potência na dificuldade de conexão com Silvia, ou pelo menos no meu caso especificamente. No geral, a impressão é de alguém que recebeu passivamente todos os efeitos do período – até quando os fatos eram próximos a ela –, o que, pasme, é normal e natural, mas não quer dizer que é interessante.