Zé do Caixão e o Nascimento do Terror Brasileiro no Cinema
Por Roberta Mathias
José Mojica Marins conseguiu fazer algo que somente grandes homens conseguem fazer. Podemos, aliás, atribuir à Mojica dois grandes feitos. O primeiro foi criar um personagem tão forte que se confunde à figura do próprio criador. Mojica foi Victor E Frankenstein. O segundo foi consolidar o gênero de terror no cinema nacional com filmes que tinham a cara do Brasil. Baixo orçamento, ironia e crítica (disfarçada de deboche).
Sua origem circense – curiosamente atuou como palhaço na infância, outra figura que ronda as obras de terror – é a cara dessa mistura que mais tarde foi o diferencial de seus filmes. É impossível traçar toda sua filmografia em poucas linhas – foram mais de 30 filmes, muitos dos quais roteirizados, estrelados e atuados por Mojica. É impossível também ignorar sua importância para o cinema nacional.
Ainda que sua produção tenha ficado mais esparsa a partir da década de 1990, começou a ganhar terreno no exterior. Admito que eu mesma só consegui ver um filme nas telas do cinema: “Encarnação do Demônio” de 2008, em um Odeon quase vazio. Mesmo assim, aqui no Brasil, a figura do Zé do Caixão continuava a aparecer em programas de entrevistas, auditório e de comédia. Creio que o próprio José já considerava Zé do Caixão como parte de sua personalidade. Por isso, minha relação com o clássico de Mary Shelley.
É uma pena que Mojica morra justamente quando o cinema nacional parece reencontrar o gênero com filmes que mesclam medo e graça, como foi e é o personagem principal do diretor. É possível que a nova cara do terror nacional tenha começado com “Quanto vale ou é por quilo? ” (2005) e “Os Inquilinos”, este lançado em 2009, um ano após o último filme de Mojica nos cinemas. Ambos de Sergio Bianchi, que já trabalhava com o gênero desde a década de 1980, mas levanta burburinho com as críticas sociais apontadas em “Quanto vale ou é por Quilo?”. Pelas mãos de Juliana Rojas e Marco Dutra (tendo “As Boas Maneiras“, de 2017, como exemplo) e com a figura de Marat Descartes, o cinema de terror nacional renasceu das cinzas no início dos anos 2010. Também com ironia, entre o terror e a comédia. Talvez seja esse o terror possível de se fazer em um país como o Brasil, no qual a própria realidade nos convida a exercitar a chacota.
Seria fácil imaginar um filme de terror no qual a população de uma grande cidade urbana briga por litros de garrafas PET de água enquanto vê seu abastecimento ser contaminado por várias sortes de produtos. Quem viu a obra de terror de José Mojica Marins se tornar menos frequente pode ter pensado há alguns anos que nossa fonte de criação para o gênero havia secado. Infelizmente, terror e Brasil são temas que combinam. Infelizmente, Zé do Caixão não verá as reverberações de seu personagem na nova geração de terror que desponta com uma infinidade de temas para trabalhar.
Aos 83 anos, morreu nas vésperas do Carnaval, tempo de Exú na Umbanda. Exú – Laroyè – está sempre nas ruas, mas é nessa época que algumas homenagens e pedidos de proteção são direcionados a ele, pois é o intermediário entre o mundo dos vivos e dos Orixás. Essa relação entre Exú e o personagem Zé do Caixão já foi trabalhada em inúmeros textos e não pretendo desenvolvê-la aqui (apesar de ser fácil identificar, ao menos visualmente, semelhanças entre o personagem de cinema e o Orixá que abre passagem tanto na Umbanda quanto no Candomblé) .
O próprio José, no entanto, era cético e dizia que tudo era ficção. Eu, como não acredito em coincidências, diria que o personagem partiu quando mais precisamos nos utilizar da ironia de Exu. Tomara que Juliana Rojas e Marco Dutra deem conta.