What Happened, Miss Simone?
Maldito Mississipi
Por João Lanari Bo
Netflix
“What Happened, Miss Simone?”, documentário de 2015 dirigido por Liz Garbus sobre a inigualável Nina Simone – cantora, pianista, compositora, e ativista política – é, antes de tudo, a história de um corpo: no princípio, é o corpo e sua eficácia, sua capacidade de ação sobre os objetos – Nina, nascida Eunice Kathelyn Waymon, menina-prodígio musical, talento nato para o piano, atravessa a estrada de ferro que separa as comunidades na Carolina do Norte, negra e branca, para treinar música clássica com a professora branca. Em seguida, é o corpo e a propriedade de si, a posse de um território pessoal, íntimo: é o corpo de Nina consciente de sua dimensão biológica e mental, imerso na sociedade do espetáculo. O terceiro estágio é a manifestação, pelo corpo, de um pertencimento que designa o sujeito em uma esfera de trocas e interações: Nina, enfim, politizada. Em entrevista à BBC, em 1999, disparou: “Minha música como uma arma política me ajudou durante 30 anos a defender os direitos dos negros norte-americanos e de gente do Terceiro Mundo em todo planeta… quero fazer o público consciente do que fizeram a mim e a minha gente em todo o mundo”. Sua vida configura uma trajetória prazerosa e sofrida, intensa e incansável, muito além do clichê habitual das narrativas sobre ascensão e queda de artistas na indústria cultural.
Nina queria ser pianista clássica – barrou-a o Instituto de Música Curtis, Filadélfia, considerado o melhor conservatório dos Estados Unidos: dois dias antes de sua morte, em 2003, soube que receberia um título honorário do Instituto. Foi o racismo dos examinadores do Instituto que a obrigou a reinventar-se, migrando para o jazz e o blues. “What Happened, Miss Simone?” foca, na sequência, em um personagem de fala mansa, sorriso ameno: é Andy, o homem com que se casou em 1961, policial aposentado da seção de narcóticos em Nova York, durão – quando ele chegava, “todos os marmanjos saiam correndo”, comenta Al Schackman, guitarrista que acompanhou Nina anos a fio. Andy prometeu “desenvolvê-la como artista”: promoveu o sonho de Nina – apresentar-se no Carnegie Hall – em 1963, mas tocando jazz/blues, e não Bach. Foi um sucesso: você vai ser uma “mulher negra e rica”, garantiu. Para chegar lá, será preciso trabalho, trabalho e mais trabalho. Nina, sempre elegantérrima, segurou até onde pôde seu corpo útil de artista, objeto de lucro do marido-empresário e de desejo do imaginário da plateia. Andy se revela: enfurecido, começa a castiga-la, com violência. “Ele colocou uma arma na minha cabeça, me amarrou e me estuprou”, disse ela.
Em 15 de setembro de 1963, domingo pela manhã, na cidade de Birminghan, Alabama, quatro crianças negras – Denise, de 11 anos, Cynthia, Carole e Addie Mae, de 14 – foram assassinadas por uma bomba plantada pela Ku Klux Klan. Edgar Hoover, diretor do FBI, obstruiu e paralisou as investigações antes que elas fossem concluídas. Só em 1977 o caso foi reaberto: a última condenação ocorreu em 2002. Para Nina Simone, foi um marco: “como ser artista e não refletir sobre os tempos? Quero tocar as pessoas, deliberadamente!” Na lata, escreveu “Mississipi Goddam“: tornou-se uma ativista de direitos civis, compositora, poeta e intérprete engajada até a alma:
O nome desta música é maldito Mississippi
E eu quero dizer cada palavra
Alabama me deixou tão transtornada
Tennessee me fez perder o sossego
E todo mundo sabe sobre o maldito Mississippi
Filas de grevistas
Boicotes escolares
Eles tentam dizer que é uma conspiração comunista
Tudo que eu quero é a igualdade
Para minha irmã meu irmão meu povo e eu
Nina aproximou-se de líderes e intelectuais, James Baldwin, Malcom X e Martin Luther King. Eram os anos de 1960, tudo parecia possível. Logo, o desastre: Dr. King, com 38 anos de idade, é abatido a tiros, em 1968. Enfastiada, acaba deixando seu país “para nunca mais voltar”, e vai para a África, Libéria, país construído pelos escravizados que voltaram dos Estados Unidos. Nina sente-se plena e otimista, passa o dia na praia, de biquíni. Depois de três anos, sem trabalho, não deu mais: foi para a Europa. Logo depois de sua partida, a Libéria mergulhou numa crise que parecia interminável – golpes de Estado, duas guerras civis, centenas de milhares de mortos. “What Happened, Miss Simone?” acelera o passo nessa quadra final da vida de Nina Simone, com a saúde mental abalada, mas resgatada em seguida por amigos fiéis (entre eles Al Schackman). Como escreveu em sua autobiografia, “o que me manteve sã era saber que as coisas iriam mudar, e era uma questão de me manter inteira até que isso acontecesse”.