Viver Duas Vezes
Road Movie Repetitivo
Por Daniel Guimarães
Aproveitando não só as convenções do gênero da comédia dramática, “Viver Duas Vezes” também se esbalda nos road movies familiares, que parecem implorar por cenas engraçadinhas de pequenos desajustes ou infortúnios. Cansativo perceber que a encenação está tão presa e calculada, no pior sentido, a se ajustar dentro de um esqueleto já usado antes de melhores e mais inovadoras maneiras.
Dirigido por Mari Ripoli, o novo longa-metragem espanhol da Netflix conta a história de Emilio (Oscar Martínez) que, após ser diagnosticado com Alzheimer, decide corrigir um erro do passado. Com uma memória afetiva de uma relação com uma menina que nunca se realizou, ele vai em busca deste amor vivo em sua lembrança. Dentro disso, “Viver Duas Vezes” se mostra interessado em entregar-se a esquetes triviais, mais do que a uma unidade narrativa. Os tons são alternados repetidamente, de forma a nos questionar qual é a atmosfera que deseja abordar a partir de Emilio. Constantemente, sua doença mental serve como elemento cômico, especialmente nas discussões com sua neta Blanca (Mafalda Carbonell). Quando necessário para adentrar em zonas de emoção e de impacto, porém, irá para o espectro dramático.
“Viver Duas Vezes” se mostra a mercê da inspiração momentânea de seu texto para gerar envolvimento nas “trapalhadas” do road movie. Isto é, carros irão quebrar no meio do caminho, desencontros irão ocorrer, brigas em hotéis no meio do nada e por aí segue. Não existe uma estrutura narrativa que possibilite a inserção de pausas para a comédia ou mesmo uma integração ao todo. Com isso, gera-se cenas como a que interagem com a enfermeira/recepcionista em busca de informação. Nela, se repete a exata mesma piada, sobre seu mau-humor, em duas cenas em sequência. Assim como o personagem do genro Felipe (Nacho López), que nada acrescenta a narrativa além da tentativa de humor com os estereótipos do coaching.
A modernidade, os tópicos do momento e a tecnologia é, por sinal, outro ponto que o filme irá trabalhar, parecendo se mostrar “atento” para as tendências. A criança é aquela que sabe tudo e usa o celular por todo tempo. O avô é o rabugento que sequer possui uma televisão. E eles entrarão em conflito com isso. A encenação, dentro dessa junção de convenções, soa como uma grande aposta na “frase de efeito” da vez, visto que todos esses momentos são conhecidos, mas que alguns poucos irão funcionar quando a linha de fala for criativa.
Em seu drama, apela-se mais para a tristeza inerente da doença do que para um vínculo emocional e de identificação com o personagem, tornando a experiência dramática em artificial pela maior parte do tempo. É nela, porém, que o filme encontra seu maior mérito e sua essência. “Viver Duas Vezes” parece ressaltar a agressividade do tempo quando Emilio descobre que está perdendo sua memória, sua conexão com a própria história. O que se deixou de fazer passa a ter um peso forte frente a esse tempo, gera-se uma angústia inabalável. “Não se descobre um número primo sem sacrifícios”, diz o protagonista em certo momento, em busca de aliviar sua consciência das escolhas que cometeu. Entre sua história de amor, porém, há um meio que nada parece dizer.
Sua filha Júlia (Inma Cuesta) , seus dramas e seu casamento são tópicos que parecem pertencer a outro filme. Enquanto deseja cuidar de seu pai devido a sua saúde, tudo se encaixa no espectro. Quando se passa a levar seus traumas de criação, de atenção do pai, ou a briga no relacionamento com o péssimo personagem do marido, nunca entra em uma unidade. Quando falamos de Blanca, sua neta, é insistente e repetitivo a forma que lidam com seu “vício” no celular e na relação com sua mãe. Assim, o longa caminha de forma arrastada pela forma que cria seus desencontros. Encontrar Margarita, seu amor de infância, é uma árdua tarefa, visto que há anos não se falam. Não há nada de instigante, porém, no ato de procurar, nada que intrigue ou que construa novas imagens dela em sua lembrança. Afinal, estamos falando de memória, especialmente uma que o guia, possibilitando diversas maneiras de cria-la. “Viver Duas Vidas”, porém, não consegue ir além da dicotomia do matemático estudioso que se apaixona quando descobre que a vida vai além do exato e do calculado.