Visão de uma Borboleta
O Sonho e a Borboleta
Por João Lanari Bo
Festival de Cannes 2022
Sonhei que era uma borboleta, e quando acordei vi que era um homem. Agora não sei se sou um homem que sonhou ser borboleta, ou se sou uma borboleta que sonha ser um homem (Chuang Tzu)
“Visão de uma Borboleta” marca a estreia do realizador ucraniano Maksym Nakonechnyi, e foi finalizado poucos dias antes da invasão da Rússia, em fevereiro de 2022. Filmes de guerra em geral não escapam dos dispositivos habituais do gênero: heroicização que enaltece feitos e bravuras, personagens unidimensionais e ambientes maniqueístas. No caso em tela é diferente – a heroína também é problematizada, não apenas ela, mas o seu entorno próximo: testemunhamos uma história dura e realista, que busca um olhar crítico sobre a sociedade de um país abalado pela guerra, que começou em 2014, com a anexação da Crimeia pelas tropas de Putin. À anexação seguiu-se logo o impulso separatista das províncias de Donetsk e Luhansk, no leste da Ucrânia – e durante oito anos ocorreu por ali uma guerra de fricção, opondo as forças ucranianas aos separatistas apoiados pela Rússia, com altos e baixos de intensidade, e cerca de 14 mil pessoas mortas. Sergey Loznitsa mostrou em “Donbass” o hibridismo alucinado desse conflito, que misturava forças regulares com assassinatos e roubos em larga escala perpetrados por gangues, separatistas ou não. A invasão em 2022 foi apenas o upgrade final do status quo de violência.
A guerra naquelas paragens era uma latência pulsante, ou seja, sucessão de intervalos entre o começo de um estímulo e o início de uma reação associada a este estímulo. “Visão de uma Borboleta” mergulha num desses intervalos, extraindo seu páthos de circunstâncias extremas, fictícias mas plausíveis: o enredo acompanha uma especialista em reconhecimento aéreo feito por drones, Lylia (Rita Burkovska), que foi capturada pelos rebeldes e mantida no cativeiro por dois meses. A sequência inicial é a troca de prisioneiros que devolve Borboleta – esse era sua alcunha – ao convívio familiar. Seu reencontro é narrado como se fora noticiário de rede social, com emojis e comentários de espectadores online piscando na tela. O que aconteceu com o cabelo lindo dela? arrisca um misógino diletante; é difícil imaginar o que ela passou, opina um solidário preocupado. Chegando em casa, recusa ser tocada por seu marido: nas suas costas, cicatrizes profundas ladeiam tatuagens. Todos sabem que Lilya foi torturada, de um jeito ou de outro – sua mãe conta que recebia ligações no celular com gritos da filha ao fundo. A introspecção da personagem esconde um drama interno, que termina por se revelar: Lilya foi estuprada por seu carcereiro, e está grávida.
A memória do trauma foi expressa visualmente por uma série de glitchs, falhas que desestabilizam a imagem eletrônica, ruídos visuais que irrompem no inconsciente da Borboleta. A memória, enfim, é um exercício de pixelização – neurônios e células que se encontram e se excitam, transmitindo informação, a famigerada sinapse. Maksym Nakonechnyi disse que a solução é orgânica e metafórica, em termos do que acontece com a heroína e sua personalidade. Por átimos de segundo, pequenos elementos de sua memória se sobressaem, como pixels individuais, e remetem Lilya ao estado de choque subjacente à sua existência. O trauma, claro, é violento: ninguém perguntou sobre isso no seu retorno, quando se submeteu a exames físicos e psicológicos. Seu marido, Tokha (Lyubomyr Valivots), é um soldado desmobilizado, dono de um cachorro que atende pelo nome de Tarantino: nas noites frias junta-se a um grupo de milicianos de extrema direita e sai para limpar ruas e florestas, leia-se acampamento de ciganos. Entendo, diz ela: vocês são escoteiros. A vida civil é um desajuste, não é o que se espera voltando de uma guerra. “Visão de uma Borboleta”, com seu realismo seco e implacável, exibe a desconstrução da heroína, em contraste com se esperaria de um cinema supostamente atrelado ao esforço de guerra do seu país de origem.
Isso não significa que Nakonechnyi seja omisso em relação ao que se passa na Ucrânia, pelo contrário – ele escolheu permanecer em Kiev depois da invasão, com mísseis caindo e pessoas próximas morrendo ou deixando o país. A ideia para o roteiro de seu longa surgiu quando editava documentário sobre mulheres na guerra, em 2017, intitulado “Batalhão Invisível”. Com a escalada absurda do conflito, tem se dedicado a registrar sons e imagens das tragédias cotidianas, a fim de gerar um arquivo audiovisual para combater os estragos da propaganda russa. Cinema em tempo de guerra, literalmente.