Virgínia e Adelaide
Mulheres que falam e acertam o tom da base
Por Júlia Wehmuth Roth
Durante o Festival do Rio 2024
Sobretudo, uma casa, duas mulheres, uma parte da história pouco debatida, porém necessária, e uma pitada de ficção. Isso seria “Virgínia e Adelaide”, dirigido por Yasmin Thayná junto de Jorge Furtado, e interpretado por Gabriela Correa e Sophie Charlotte. O longa-metragem aborda mulheres falando aquilo que foi ignorado por tempo demais: coisas trancadas nas bocas de quem veio antes. Essa obra mostra como, ainda que até hoje mulheres mudem seus nomes, e sacrifiquem seus sonhos, em nome da sobrevivência, e acima de tudo sacrifiquem o direito de viver lutando no lugar de morrer sobrevivendo em nome de filhos, amantes, pais, trabalho etc… Existem momentos e lugares onde essa luta não morre.
Em virtude de criar formas interessantes de transmitir acontecimentos históricos deste país, “Virgínia e Adelaide” utiliza diferentes, estéticas de ambientação e gêneros. Entre elas uma abordagem documental reflexiva e performática. Sendo que o próprio filme se inicia com a seguinte frase: Todos os fatos, nomes e lugares são reais, mas o resto é ficção. Assim, para atingir esse efeito o filme utiliza fotografias antigas e manifestações culturais, por meio de estampas de roupa características, músicas, obras modernistas e desenhos conhecidos como os da calçada de Ipanema. Além disso, outra abordagem foi a ficcional que se deu quase inteiramente dentro da casa de Adelaide, nesse sentido, é importante elogiar a capacidade do roteiro, e do trabalho das atrizes em transmitir os acontecimentos utilizando somente a oralidade. Em vários momentos, quando haviam relatos de momentos do passado, (principalmente da vida de Virginia), mesmo sem nenhum auxilio visual se cravou um imaginário tátil das situações, gerado pela forma muito natural como eram falados.
Evidentemente, isso fica ainda mais complexo quando analisamos as questões de essas personagens não só falarem idiomas diferentes, mas também terem vivências diversas. Assim o fato Adelaide ainda precisar apreender a falar português com a fluência que deseja, para entender Virginia, se conecta com a perspectiva de por ela não ser uma mulher negra e, portanto, não saber o suficiente da realidade de sua “paciente” para compreende-la como um todo. Mesmo possuindo a vivência em comum da perseguição, (considerando que Adelaide era uma Judia, em tempos de Nazismo) ela jamais deixara de ser branca. De todo modo, ela está disposta a aprender e se conectar, assim mesmo que sempre tenha um pouco de sotaque, ela eventualmente vai compreender a “língua” de Virginia.
Fica Claro em “Virgínia e Adelaide” a procura por uma flexibilidade na composição de arte, em seu decorrer ela se torna anacrônica ao passo que diferentes cenas trazem elementos de tempos diferentes, com variações no tom da iluminação e das roupas das personagens, que também se modificam conforme vão estabelecendo uma relação de confiança. Além disso, uma sacada interessante no longa “Virgínia e Adelaide” foi o uso da maquiagem como forma de reflexão do conflito de Virginia, que começa o filme utilizando um tom de base mais claro que a própria pele, o que muda ao longo das conversas com a psicanalista e de seus estudos, onde ela começa a aceitar a si mesma e sua pele.
Entretanto, uma das poucas coisas que me incomodou no filme foi o sotaque alemão da personagem. Isso porque de acordo com ela mesma seu domínio do português não era tão bom, mas entre as frases e palavras, esse sotaque desaparece e depois volta. No entanto, cabe ressaltar que eu mesma nunca ouvi uma pessoa nativa da Alemanha tentando falar português. E você, já? Em última instância o ideal seria que esse filme não servisse para educar, muito menos explicar o racismo ou machismo. Todos já deviam ter conhecimento disso. Devia no máximo ter o objetivo de fazer as pessoas se colocarem na pele de quem sofre, de ajuda-las a entender, mesmo que uma mera fração o que é viver a vida toda lidando com esse tipo de violência.
Mas não vivemos em uma utopia, portanto “Virgínia e Adelaide” tem sim uma função educativa de dizer o que devia ser óbvio, e relembrar fatos históricos que em alguns lugares nunca foram exibidos, nem meramente reconhecidos. No sul do país por exemplo, o estado novo, com suas atitudes relacionadas a violência, tortura, perseguição, e suas relações com o governo fascista são frequentemente deixadas de lado. (Não é a toa que pouco tempo atrás estavam pedindo uma ditadura). O que torna a produção de projetos audiovisuais como esse sempre necessárias.