Veneza
Uma viagem poética
Por Marcelo Velloso
Durante o Festival de Cinema de Gramado 2019
“Veneza”, de Miguel Falabella, nos conta a história da dona de um bordel, a Gringa, interpretada pela atriz Carmen Maura, que pede insistentemente aos que a cercam que realizem o seu último sonho: ir até Veneza para reencontrar Giácomo (Magno Bandarz), o único homem a quem amou, para que tenha a chance de pedir-lhe perdão por ter lhe abandonado. Inúmeras são as dificuldades para levar Gringa que está cega e doente para Veneza e a maior dela é a questão financeira, até que Tonho (Eduardo Moscovis) tem uma brilhante ideia e começa a arquitetar tudo junto com as meninas do bordel e com uma trupe circense.
“Veneza” (2018) apresenta uma fotografia linda e está recheado de referências, o que ajuda muito a passar toda a fantasia que a história abrange. Os elementos circenses que remetem a Soffredini, a poesia das obras de Fellini, por exemplo. Miguel Falabella desempenha uma boa direção e tem o roteiro bem desenvolvido. A obra que já foi encenada no teatro e estreou em 2003 no Rio de Janeiro com Laura Cardoso, Arlette Salles, Ewerton de Castro, Débora Olivieri, Juliana Baroni e Jarbas Homem de Mello no elenco original. A adaptação para o cinema envolve riscos, mas quanto a isso a missão foi cumprida. Paralelamente, imagens do passado de Gringa com Giácomo são mostradas no filme e funcionam muito bem, trazendo poesia principalmente no momento do circo. Vale ressaltar também que as belas imagens de “Veneza” devem-se às ótimas escolhas de angulações e aos planos-sequências que agregam valor ao filme. Os planos fechados no rosto de Carmen Maura que potencializam a sua dramaticidade também impressionam.
O elenco tem um ótimo desempenho, com uma atuação visceral de Carmen Maura na pele de Gringa, com Dira Paes e Du Moscovis com química e boa troca nas cenas como Rita e Tonho. A personagem de Dira funciona como os olhos da Gringa e acaba sendo quem chama a responsabilidade pra si na busca de realizar o sonho da anciã. Tonho assume a posição do homem da casa e Du Moscovis consegue dosar bem no papel, passando o papel do seu personagem que reforça o lado família existente naquela casa. Outro casal de atores que chama atenção pela química em cena e, sobretudo pelo desempenho é a atriz Carol Castro e o jovem ator Caio Manhente. Eles vivem Madalena e Júlio, trazendo o amor na essência e o desprendimento de preconceitos na relação. O personagem de Caio é bem desafiador, mas o ator consegue construir o Júlio com sutileza e muita competência.
“Veneza” traz algumas questões delicadas, principalmente em relação às personagens femininas: o fato das prostitutas do bordel serem claramente colocadas como moeda de troca no momento da negociação com a trupe circense e uma cena específica de agressão, quando uma das prostitutas é agredida sem reagir. Outra questão polêmica que o filme traz é a cena do desfecho do personagem trans. É sem dúvidas uma das cenas mais fortes de “Veneza”. Ao mesmo tempo esse tipo de situação ser apresentada no filme é importante para levantar o debate sobre uma questão tão preocupante, uma vez que Dados da União Nacional LGBT apontam que o tempo médio de vida de um transsexual no Brasil é de apenas 35 anos, enquanto a expectativa de vida da população em geral é de 75,5 anos.
A ambientação é fascinante e o jogo que há com os três ambientes: bordel, galinheiro e circo, gera uma atmosfera que funciona muito bem no filme, que vai do humor à fantasia. O filme traz uma espécie de “erotismo mágico”, sem pretensão de ser pesado, o sexo é visto como um elemento que dentro do contexto do filme assume diversos significados. A relação daqueles personagens com o sexo pode ser até que assuste a alguém, mas não podemos esquecer que se trata de um bordel. O final de “Veneza” é encantador e utiliza-se de uma linguagem teatral pra transmitir toda fantasia do filme que fala sobre sonhos, sobre a empatia ao mostrar personagens se esforçando pra realizar o sonho do outro. Aquele é um universo particular, mas que nos deixa reflexivos em diversos aspectos pra essa nossa realidade. A poesia das imagens e dos efeitos gráficos propicia uma viagem lúdica onde o público embarca junto.