Uma Baía
O fardo, o inimigo e o espaço
Por Letícia Negreiros
Festival do Rio 2023
Viver é uma questão de ponto de vista. O mundo se desenrola em alegria e tristeza aos olhos de cada um; a solidão habita na bagagem de cada um. Para Murilo Salles, ela está em “Uma Baía”, com seu plano de fundo na Baía de Guanabara. Está no porto, nos mangues, na comunidade, nas crenças, na arte, no trabalho.
Cada instância personifica a Baía, aqui um personagem traiçoeiro e ganancioso, mas constante. “Uma Baía” nos apresenta, no espaço, um agouro. Suas garras se prendem ao trabalhador, mantendo-o atado à presença mais marcante do longa: a ausência. É um lugar tenebroso e opressor. A grande profundidade de campo contrasta a imensidão natural com mares de pessoas e construções. Sê vê demais. A paisagem se transmuta em um interminável local de trabalho. A constante noção de tudo é sufocante. O trabalhador não é dono de sua casa. Seu único papel no longa, trabalhar, parece perigoso. Sua presença é desimportante diante a imponência do meio. O indivíduo se torna pequeno, esquecido, desimportante em seu próprio espaço.
Estando, então, no infindável, apenas o que se faz é sobreviver. Qualquer ser vivo em tela apenas trabalha em prol da chance de mais um dia, com ou sem sucesso. Não há espaço para descansos. As pausas são tensas, receosas. Imprimem no espectador a frustração do próximo expediente. Uma preparação para mais sobrevivência. Não há sossego na Baía, nem em lugar nenhum. Não há calor humano. Os contatos e interações com os personagens principais são exclusivamente transacionais. Eles são confundidos pelos demais com o ambiente em que estão inseridos. Não há afeto. Há compras, pagamentos e esquecimento, mas há beleza.
“Uma Baía” por vezes sequestra desconforto da solidão com noção contemplativa de belo. Presenteia o espectador com cartões postais, tentando, momentaneamente, fazê-lo esquecer que estão todos fadados ao fardo do trabalhador. Disfarça a onipresença de seu peso com adornos que, realmente, apenas o deixam mais opressivo. Salles demarca neste sequestro a confusão da Baía enquanto personagem. O trabalhador vive em solidão. A Baía, por sua vez, encontra-se na solidão e na solitude.
Em um momento, o isolamento das personagens é reflexo de seu próprio. Com tantas distâncias entre suas facetas, a Baía se torna solitária em seu funcionamento. É uma vítima do mal que infringe ao trabalhador. Em consequência de um tirano, está destituída de si. Tirano este que é invisível, mas seus rastros são muito bem marcados. Ele poda o indivíduo, limita suas ambições a apenas mais um amanhã. O trabalho exploratório de todas as suas possibilidades é agonizante. A ininterrupta presença humana é alarmante. O trabalhador infringe a solidão.
A solitude de “Uma Baía” está em todo o resto. É a presença traiçoeira e constante. Enquanto sufoca o humano, o espaço se deleita. As fábulas visuais, arquitetadas em oito atos, delimitam uma hierarquia. O espaço acima, o humano abaixo. A Baía escolhe se distanciar de tudo. Se coloca tão externa que se transmuta em grades e redomas. O passar suave das gravações transmite deleite com a situação. A desesperança é como um elemento qualquer nas fotografias de uma galeria. A serenidade de se apreciar é sugerida, mas aceitá-la é turbulento. O espaço se isola do cotidiano e se isenta da responsabilidade da dor causada.
Seria, então, a Baía de Guanabara inimiga ou aliada do trabalhador? Eu não conseguiria dizer. A resposta varia pela identificação com o trabalhador. Se vive como engrenagem em seu meio? Ou o meio é apenas mais uma vítima do tirano? “Uma Baía” também parece não saber.
A oscilação rouba do espectador a articulação de uma resposta. Tudo o que resta a ele são os piores resultados da empatia: desconforto, angústia e, aos de coração mais solidário, clemência. Mas são súplicas à situação do trabalhador? Seria o espaço uma extensão do tirano? Ou são súplicas ao próprio tirano, malucador do homem e do espaço? Também não saberia dizer.
O incômodo de não saber é alienígena à crudez da entrega das gravações. A inconsistência na representação da Baía parece um tropeço na brutalidade da mensagem. O desamparo é frustrante. Como canalizar a angústia e o desconforto se o inimigo pode ser meu aliado – ou pior, o contrário? Ao final, trabalhador e espectador tem algo em comum: a imponência.