Um Homem Diferente
Persona
Por João Lanari Bo
Festival de Berlim 2024; Mostra de São Paulo 2024
O ator compõe a forma cinematográfica na mesma dimensão que o enquadramento e a luz. E assim como o enquadramento não pode se reduzir às bordas de um retângulo e nem tampouco a luz à iluminação das coisas, o ator não é reduzível a um mero significante do qual o personagem seria o significado (Nicole Brenez)
“Um Homem Diferente”, longa que Aaron Schimberg lançou em 2024, é – perdão pela redundância – um filme diferente. A logline oficial do filme indica:
O aspirante a ator Edward (Sebastian Stan) passa por um procedimento médico radical para transformar drasticamente sua aparência. Mas seu novo rosto de sonho rapidamente se transforma em um pesadelo, pois ele fica obcecado em recuperar o que foi perdido.
O que era a aparência de Edward? Ele sofre de neurofibromatose, uma rara doença genética que leva ao crescimento de tumores em alguma parte do no corpo, neste caso, no rosto. O filme abre com Edward gravando vídeo educacional para uma corporação, ensinando aos funcionários como lidar, de forma correta e respeitosa, com colegas de trabalho desfigurados por deficiências genéticas. Rostos que assustam, monstruosos a um primeiro olhar. Em seguida acompanhamos Edward no metrô, as pessoas parecem não notar, ou se o fazem, é de forma discreta. Alguma dormem. O olhar de Edward, o olhar de alguém com um rosto escamoso, cheio de protuberâncias, totalmente assimétrico – é resignado. Chegando no seu apartamento, ele cruza com a nova vizinha, Ingrid (Renate Reinsve), no meio da mudança. Ele esquiva seu rosto no limite de ser alcançado por um sofá carregado pelas escadas. Ela tem um pequeno susto, rapidamente transfigurado para um sorriso indulgente.
A naturalidade desses momentos iniciais dos que cercam Edward em “Um Homem Diferente”, com a breve exceção de Ingrid, desarma a eventual repugnância da audiência frente a essa, de novo, diferença. Olhamos o rosto de Edward como uma persona, especial, mas uma persona, no sentido teatral – palavra italiana derivada do Latim para um tipo de máscara feita para ressoar com a voz do ator (per sonare significa “soar através de”). A máscara de Edward foi objeto de um intrincado make-up, praticamente indiscernível. O ator Sebastian Stan executa gestos e movimentos condizentes com a máscara, ele sofre com a condição, mas encara seu destino estoicamente, até com alguma firmeza. É quando decide submeter-se a um tratamento revolucionário para superar o infortúnio.
O tratamento pouco a pouco vai descascando, literalmente, as escamas da sua face e … a máscara cai. De um homem desfigurado, emerge um novo indivíduo (o Sebastian Stan da vida real). Sai de casa, um mundo novo se apresenta, vai a um bar e espanta-se com seu poder de sedução. Inventa um novo nome, Guy, muda-se do antigo apartamento, torna-se um corretor imobiliário de sucesso, e, nas horas vagas, engaja-se em uma produção teatral off Broadway escrita por ninguém menos do que Ingrid. A peça – inspirada na vida de Edward a partir da intimidade que estabelecera com a vizinha – é tudo o que ele queria para aproximar-se dela, agora como Guy, conseguir o papel e torna-la seu par romântico.
Nessa altura, somos tentados a ver em “Um Homem Diferente” uma (quase) zombaria da sujeição social a que estamos submetidos, essa que disciplina nosso olhar em plena sociedade de consumo e seus padrões publicitários de beleza – e que nos condicionou a ver assimetria facial como feiura e a internalizar a feiura como algo desumano. Edward/Guy é o guia dessa transição, o novo mundo que se descortina para ele é o acesso à ordem instituída do olhar. Ele carrega a máscara – sua antiga face, agora cristalizada numa máscara, sua persona na peça de Ingrid. É, ou parece ser, o melhor dos mundos.
É quando um princípio de realidade se interpõe nos desígnios de Guy. Alguém, que se apresenta como Oswald, interrompe os ensaios da peça – alguém cuja neurofibromatose é real. O ator, que não é reduzível a um mero significante do qual o personagem seria o significado, chama-se Adam Pearson – na vida real, além de ator, é apresentador de TV e ativista envolvido em programas de extensão para prevenir bullying associado a deformidades.
A máscara, artifício básico da persona, é, para desespero de Guy/Edward, corpo. E mais: carismática e sedutora, compondo a forma cinematográfica na mesma dimensão que enquadramento e luz.