Um Filme Dramático
A dimensão de vidas fictícias em realidade própria
Por Fabricio Duque
Durante o Olhar de Cinema 2020
Exibido no Festival de Locarno 2019, “Um Filme Dramático”, que participa da mostra competitiva da edição online do Olhar de Cinema 2020, é uma complexa análise sócio-comportamental sobre o que acontece agora no mundo pela perspectiva de pré-adolescentes. Ainda que o documentário se desenvolva inicialmente por uma pretensão ingênua (ora pela facilidade do artifício da metalinguagem, ora pela simplificação infantilizada do olhar-espectador, pedindo permissão para aceitar o amadorismo empregado, ora pela organicidade da própria liberdade do filmar, que soa mais como uma jogada de embasar a falta de apuro técnico), ainda assim, o que poderia ser um “tiro no pé” transforma-se em estudo, que aprofunda o discurso e se livra da obrigação da forma.
“Um Filme Dramático” é conduzido pelo ato de questionar, respeitando a subjetividade do pensar, característica essa comum, esperado e intrínseca a todo e qualquer indivíduo com “identidade francesa”. Nós somos testemunhas de opiniões sem freios, de jovens (mais para crianças) que precisam aprender a arte de ser adulto desde cedo, visto que não só o mundo os cobra, mas principalmente porque a complexidade do meio em que vivem tornou-se tão plural, que é quase impossível não medir e questionar cada palavra, cada pensamento e cada ação verbal, entre acordos, uniões e contradições. O documentário pode ser mais fator de pressão a esses mirins em processo evolutivo, não só como seres humanos, mas especialmente como cidadãos de uma nação europeia, tudo por estimular ainda mais o debate e persuasão, não no campo do achismo e sim com análise dos fatos. O conflito está na necessidade de serem máquinas com cérebros mortais, dotados de idiossincrasias, limitações e crenças adquiridas.
“Um Filme Dramático” quer a realidade própria da diegese, humanizando a metafísica da imagem ao fazer com que comecemos a observá-la como pragmática. A primeira pergunta é o que é o cinema? Com tela preta que simboliza a escuridão antes da luz, quase de transcendência bíblica. Os pré-jovens respondem, e nós viajamos por definições e possibilidades. O que é uma imagem e qualquer uma pode ser considerada cinema? Como se nasce uma história? Essa vida ficção é documentário ou filme dramático? O espectador é convidado a adentrar na pessoalidade, em uma intimidade particular e única. Esses alunos, novos cineastas, escolhem o que filmar (resultado que lembra obras-quarentenas) e o realizador desta obra, em questão aqui, Eric Baudelaire, artista visual e cineasta franco-americano, como editar, mesmo sendo um filme coletivo (em que cada um possui total responsabilidade por suas preferências). É sobre o que “poderia ser um filme”.
O documentário ou “filme dramático” não tem medo de abordar questões espinhosas, como a “barba” do pai de uma das alunas que remete à “barba daquela religião” (os muçulmanos enxergados como terroristas, o principal medo focal da Europa). Percebemos que há uma poda no dizer e uma sensação velada de “tranquilidade” quando um deles afirma não ser preconceituoso com “cores da pele”, critica o “racismo de Trump” e “escorrega” no final com a rebatido do amigo negro. Lutam para diferenciar os “loucos dos normais”. Sim, mais uma vez uma pressão estrutural. Cada um filmou seu cotidiano e mostrou como vive, com total liberdade, desconstruindo com ingenuidade típica da infância o que é importante ou não aos adultos já “domados”. Ouvimos que um é da Costa do Marfim e o outro da Romênia, os dois, perdidos no entendimento, com “origem francesa”.
Contudo, é na cena do carro em “Um Filme Dramático”, que todo discurso é descortinado e desmascarado, como um furo de reportagem de um canal de televisão não sensacionalista, apenas de naturalidade coloquial. A conversa, entre adulto e pré-jovem de uma turma da sexta série (em construção), sobre imigrantes e quem pode ficar, mostra a desumanidade pela ideia neoliberal do capitalismo. Se gerar renda, fica. Se gastar, sai. Inglaterra ou país de “origem”. Quanto mais o filme avança, no meio de imagens vagas de registrar o tempo ordinário, mais tangemos e potencializamos nossas crenças. Dessa forma, nós voltamos ao olhar a nossa própria sociedade, transformada em ficção de uma realidade cega e vendada. Eric Baudelaire consegue usar “tiro” a seu favor, construindo um documento de análise antropomórfica da antropologia moderna, resgatando a essência com a falsa ideia condicionada do politicamente correto.