Curta Paranagua 2024

Tudo Sobre Lily Chou-Chou

Esse éter que se transforma em partículas

Por João Lanari Bo

Festival de Toronto 2001

Tudo Sobre Lily Chou-Chou

Tudo Sobre Lily Chou-Chou”, realizado em 2001 por Shunji Iwai, poderia se mais uma das inúmeras produções japonesas dedicadas a adolescentes, atravessando as agruras da idade escolar. Com efeito, esse é o espaço dramático do filme: mas o entretenimento aqui é virado ao avesso, não apenas pelo tom melancólico e angustiante do enredo, mas sobretudo pelo viés narrativo empregado, oblíquo e sinuoso, pontuado por jump cuts que se comprazem em ignorar incidentes que possam impactar o devir da trama. As imagens parecem provocar uma disjunção permanente na recepção do conteúdo, levadas pelo uso exacerbado da elipse. Tais recursos sugeriram a muitos críticos uma intenção do realizador em esgarçar a linguagem, com o objetivo de evocar artisticamente a intensa vida emocional da juventude japonesa, inquieta e desafeta.

As raízes dessa intensidade são conhecidas: além do pesado nível de pressão escolar, usualmente descrita como tributária do confucionismo e xintoísmo – e adaptada às exigências competitivas do mundo contemporâneo – prevalecem no Japão elevadas estatísticas de bullying, ou seja, uso de força física, ameaça ou coerção para abusar, intimidar ou dominar agressivamente outras pessoas de forma frequente e habitual. É, enfim, o ato de um aluno(a), ou alunos(as), em relação a outro aluno(a) que pode infligir sofrimento mental ou físico ao receptor(a) – e, no limite, suicídio. Alunos e alunas, vestidos com uniformes ocidentais – influência que remonta à era Meiji, em que o Japão se abriu ao mundo exterior – executam tarefas coletivas, participam de coros e orquestras, mas podem também se envolver em ações para tiranizar, oprimir, ameaçar ou amedrontar colegas.

Yuichi, retraído estudante do ensino médio, tem um amigo, Hoshino, que força Yuichi a roubar dinheiro, e obriga Shiori a se prostituir com adultos. Shiori tem uma queda secreta por Yuichi, que nutre fantasias por Yoko Kuno, pianista talentosa, por sua vez também objeto de violência por parte de invejosas estudantes. Duas personagens são mortas e outra é estuprada, e nas três ocasiões o espectador é constrangido a um esforço de inferência para decifrar o que aconteceu. Luzes estouradas e tempos confusos não ajudam: nas cenas noturnas os personagens reagem piscando e protegendo os olhos da luz brilhante da câmera digital. O grupo de amigos parte em férias para Okinawa, e a câmera assume uma inquietude perturbadora.

Esse emaranhado de emoções e disjunções de “Tudo Sobre Lily Chou-Chou” tem um arcabouço habilmente construído pelo diretor, a partir, e sobretudo, da palavra escrita: o filme em si é continuação da novela online que Iwai lançou no Japão, pouco antes de entrar em produção. Yuichi é obcecado por uma cantora pop, Lily Chou-Chou, pura fantasia, mas real: faz shows e grava CDs, mas sua existência é fantasmática, sem imagem, apenas voz. As canções, etéreas e tranquilizadoras, são um refúgio mental para ele, que montou um chat room sobre a cantora, trocando mensagens com amigos e amigas admiradores. Os chats trocados entre os fãs comentam o desenrolar dos acontecimentos, à luz das músicas. Verdadeiros intertítulos, interrompem e às vezes se somam à paisagem de gangues em guerra, bandos de garotas sádicas e adultos desmiolados. Em uma das canções, Éter, ouvimos:

eu estava esperando por esse momento

mesmo se forçar meus olhos

não posso ver à frente

ou chegar perto de você com o tempo

mantenha seus ouvidos abertos

maravilhoso todos os dias

em um mundo maravilhoso

conectar em algum lugar

Se esta parede derreter

esse éter que se transforma em partículas

transbordante

Éter, essa palavra de sonoridade clássica, paira como um mantra no mundo agoniado dos adolescentes de “Tudo Sobre Lily Chou-Chou”. Os antigos diziam que éter era o material que preenche a região do universo acima da esfera terrestre. Muita gente acreditava nisso, até épocas mais recentes, século 19: o éter fornecia um meio através do qual a luz podia viajar no vácuo. A palavra guardou uma historicidade acústica em sua significação, que retorna no timbre envolvente de Lily Chou-Chou, densa e misteriosa. Quando cai o véu, cai a ilusão: a hipnótica Lily conduz, com suas justaposições arrebatadoras do belo e do terrível, ao desenlace incontornável. A vida pode ser, para muitos adolescentes, humilhação e vingança, sensualidade e perigo. Lily, ainda:

Este espaço morto

eu não posso escapar

estava encurralado

nas fendas da realidade

meu coração adormecido

Se você tocar, esse éter

Reviver, reviver

4 Nota do Crítico 5 1

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