Tudo Sobre Lily Chou-Chou
Esse éter que se transforma em partículas
Por João Lanari Bo
Festival de Toronto 2001
“Tudo Sobre Lily Chou-Chou”, realizado em 2001 por Shunji Iwai, poderia se mais uma das inúmeras produções japonesas dedicadas a adolescentes, atravessando as agruras da idade escolar. Com efeito, esse é o espaço dramático do filme: mas o entretenimento aqui é virado ao avesso, não apenas pelo tom melancólico e angustiante do enredo, mas sobretudo pelo viés narrativo empregado, oblíquo e sinuoso, pontuado por jump cuts que se comprazem em ignorar incidentes que possam impactar o devir da trama. As imagens parecem provocar uma disjunção permanente na recepção do conteúdo, levadas pelo uso exacerbado da elipse. Tais recursos sugeriram a muitos críticos uma intenção do realizador em esgarçar a linguagem, com o objetivo de evocar artisticamente a intensa vida emocional da juventude japonesa, inquieta e desafeta.
As raízes dessa intensidade são conhecidas: além do pesado nível de pressão escolar, usualmente descrita como tributária do confucionismo e xintoísmo – e adaptada às exigências competitivas do mundo contemporâneo – prevalecem no Japão elevadas estatísticas de bullying, ou seja, uso de força física, ameaça ou coerção para abusar, intimidar ou dominar agressivamente outras pessoas de forma frequente e habitual. É, enfim, o ato de um aluno(a), ou alunos(as), em relação a outro aluno(a) que pode infligir sofrimento mental ou físico ao receptor(a) – e, no limite, suicídio. Alunos e alunas, vestidos com uniformes ocidentais – influência que remonta à era Meiji, em que o Japão se abriu ao mundo exterior – executam tarefas coletivas, participam de coros e orquestras, mas podem também se envolver em ações para tiranizar, oprimir, ameaçar ou amedrontar colegas.
Yuichi, retraído estudante do ensino médio, tem um amigo, Hoshino, que força Yuichi a roubar dinheiro, e obriga Shiori a se prostituir com adultos. Shiori tem uma queda secreta por Yuichi, que nutre fantasias por Yoko Kuno, pianista talentosa, por sua vez também objeto de violência por parte de invejosas estudantes. Duas personagens são mortas e outra é estuprada, e nas três ocasiões o espectador é constrangido a um esforço de inferência para decifrar o que aconteceu. Luzes estouradas e tempos confusos não ajudam: nas cenas noturnas os personagens reagem piscando e protegendo os olhos da luz brilhante da câmera digital. O grupo de amigos parte em férias para Okinawa, e a câmera assume uma inquietude perturbadora.
Esse emaranhado de emoções e disjunções de “Tudo Sobre Lily Chou-Chou” tem um arcabouço habilmente construído pelo diretor, a partir, e sobretudo, da palavra escrita: o filme em si é continuação da novela online que Iwai lançou no Japão, pouco antes de entrar em produção. Yuichi é obcecado por uma cantora pop, Lily Chou-Chou, pura fantasia, mas real: faz shows e grava CDs, mas sua existência é fantasmática, sem imagem, apenas voz. As canções, etéreas e tranquilizadoras, são um refúgio mental para ele, que montou um chat room sobre a cantora, trocando mensagens com amigos e amigas admiradores. Os chats trocados entre os fãs comentam o desenrolar dos acontecimentos, à luz das músicas. Verdadeiros intertítulos, interrompem e às vezes se somam à paisagem de gangues em guerra, bandos de garotas sádicas e adultos desmiolados. Em uma das canções, Éter, ouvimos:
eu estava esperando por esse momento
mesmo se forçar meus olhos
não posso ver à frente
ou chegar perto de você com o tempo
mantenha seus ouvidos abertos
maravilhoso todos os dias
em um mundo maravilhoso
conectar em algum lugar
Se esta parede derreter
esse éter que se transforma em partículas
transbordante
Éter, essa palavra de sonoridade clássica, paira como um mantra no mundo agoniado dos adolescentes de “Tudo Sobre Lily Chou-Chou”. Os antigos diziam que éter era o material que preenche a região do universo acima da esfera terrestre. Muita gente acreditava nisso, até épocas mais recentes, século 19: o éter fornecia um meio através do qual a luz podia viajar no vácuo. A palavra guardou uma historicidade acústica em sua significação, que retorna no timbre envolvente de Lily Chou-Chou, densa e misteriosa. Quando cai o véu, cai a ilusão: a hipnótica Lily conduz, com suas justaposições arrebatadoras do belo e do terrível, ao desenlace incontornável. A vida pode ser, para muitos adolescentes, humilhação e vingança, sensualidade e perigo. Lily, ainda:
Este espaço morto
eu não posso escapar
estava encurralado
nas fendas da realidade
meu coração adormecido
Se você tocar, esse éter
Reviver, reviver