Tudo sobre a 8ª Mostra Mosfilm de Cinema Soviético e Russo
Cinema em plena Guerra: Filmes Russos e Soviéticos da Mosfilm no SESC-SP
Por João Lanari Bo
A mostra foi adiada pela CPCUmes Filmes e NÃO será realizada no período de 10 a 23 de março. Fique ligado que informaremos quando as novas datas forem definidas.
No meio de um dos períodos mais turbulentos e patéticos que se tem notícia nas últimas décadas – como se não bastasse a pandemia do coronavírus – a Rússia de Vladimir Putin resolve invadir a Ucrânia de Volodymyr Zelensky, sob o pretexto de “desnazificar” o país e proteger cidadãos russos nas províncias de Donetsk e Luhansk, com o pano de fundo da percepção de Moscou quanto à ameaça que representaria a entrada da Ucrânia na OTAN. A invasão, que ignora o Direito Internacional expresso da Carta das Nações Unidas, tomou a mídia a partir de 24 de fevereiro último, e não dá sinais, no momento da confecção deste texto, que irá terminar tão cedo. De cara, a questão que se coloca é incontornável: qual o sentido dessa Mostra de cinema soviético e russo, num momento em que inúmeras atividades culturais e esportivas relacionadas à Rússia são suspensas e/ou anuladas?
Uma resposta plausível seria: sim, mais do que nunca é preciso mergulhar na alma desse gigante, investigar suas minúcias para vislumbrar, nem que seja por um átimo de tempo, o que se passa na mente desses líderes e no imaginário desse povo: que traços dessa cultura formidável podem ajudar a entender um movimento tão radical e agressivo, dirigido a uma nação tão próxima, em termos culturais, como é a Ucrânia. Quando Putin vocifera que “a Ucrânia não deveria existir” – que desejo é esse? O que move essa pulsão destrutiva? Para além das circunstâncias políticas e militares exaustivamente debatidas mundo afora, e no Brasil também, importa tentar extrair desse conjunto de filmes vicissitudes, traumas, ressentimentos, violência, perseguições – em uma palavra, diria Samuel Fuller, emoções que transitam nesse espaço carregado de intensidades e que o cinema, enquanto instrumento de expressão artística que traz embutida a “ilusão do real”, pode trazer à tona. Um filme magnífico, exatamente sobre essa região conturbada, é “Donbass”, que Sergei Loznitsa realizou em 2018 – que revelou o que o diretor chamou de “guerra híbrida”, envolvendo um conflito armado aberto ao lado de assassinatos e roubos em massa perpetrados por gangues separatistas. Uma guerra que é “chamada de paz, a propaganda é pronunciada como verdade e o ódio é declarado como amor”: em suma, um mundo onde o “grotesco e o drama estão tão entrelaçados quanto a vida e a morte”. Talvez seja essa a melhor definição sobre o que se passa atualmente na Ucrânia.
Vlácav Havel, o dramaturgo que se tornou o último presidente da Checoslováquia e o primeiro presidente da República Checa, dizia que o Império Soviético era tão grande que os próprios russos não sabiam onde começava, nem onde terminava. É com essa imensidão que lidamos ao comentar sobre filmes russos e soviéticos reunidos na presente Mostra.
A Mostra Mosfilm de Cinema Soviético e Russo é uma realização do Centro Popular de Cultura da União Municipal dos Estudantes Secundaristas de São Paulo (CPC-UMES), em parceria com o Sesc São Paulo e a Embaixada da Rússia no Brasil. Dos 16 filmes presentes na programação deste ano, 9 estão em 4K, sendo 8 recentemente restaurados, além do lançamento, “Vladivostok” (2021). Todas as exibições serão no formato DCP.
Para ingressar nas unidades do Sesc no estado de São Paulo, é obrigatória a apresentação do comprovante de vacinação contra a COVID-19 (duas doses ou dose única) e um documento com foto.
Fyodor Dostoievski, Anton Chekhov e Andrei Rublev
Dezesseis longas metragens compõem a programação da 8ª edição da Mostra Mosfilm de Cinema Soviético e Russo, que acontecerá este ano entre os dias 10 e 23/03, no CineSesc, em São Paulo. Serão exibidas produções da Mosfilm: durante seus 98 anos de existência, os estúdios Mosfilm lançaram mais de 2.500 longas-metragens, incluindo diretores que contribuíram para a criação da história do cinema mundial, como Serguei Eisenstein e Vsevolod Pudovkin. Duas datas importantes para a cultura e o cinema mundiais serão celebradas na Mostra: o aniversário de 200 anos do escritor russo Fyodor Dostoievski, e os 100 anos do premiado diretor e roteirista Yuri Ozerov, realizador de mais de 20 filmes, entre documentários e longas metragens.
Baseado no escritor homenageado, será exibido “O Idiota”, dirigido por Ivan Pyryev e lançado em 1958 – produzido em um momento de distensão, logo após o 20º Congresso do Partido Comunista, em que Nikita Khruschov denunciou os crimes de Stálin. Dostoievski falava demais sobre crises religiosas e não era um autor popular entre os ideólogos do Partido: Pyryev, que foi diretor da Mosfilm, investiu em um livro cujo personagem principal não tem, certamente, o perfil unidimensional dos heróis positivados de seus trabalhos anteriores, afinados com o olhar stalinista. A adaptação cobre a primeira parte do livro.
“Enfermaria Nº 6”, de 2009, feito por Karen Shakhnazarov, com roteiro baseado no conto de Anton Chekhov, é outro destaque. A história se passa em um hospital provincial e explora o conflito entre Ivan Dmitritch, paciente, e Andrey Ragin, médico-chefe do hospital. Ivan denuncia a injustiça que vê em toda parte, sobretudo na ala psiquiátrica, enquanto o médico insiste em ignorar seus argumentos. Shakhnazarov, de modo criativo e instigante, optou por alternar um estilo documental com sequências ficcionais: por vezes, os personagens enunciam suas falas olhando para a câmera como se estivessem sendo entrevistados.
“Andrei Rublev”, de 1966, dirigido por Andrei Tarkovsky, é um dos melhores filmes do cultuado diretor: o herói, ou anti-herói, é um pintor medieval de ícones religiosos cuja vida se conhece pouco – mas cuja relevância na tradição pictórica russa é essencial. A Rússia no século 15 era um território instável, com um conflito interno intermitente que durou décadas: manter a fé nesse caos e resistir à barbárie de tártaros e príncipes rebeldes era uma proeza, como era também a de não ceder à tentação dos pagãos. A ambição do filme, naqueles anos soviéticos em que foi produzido, era a de inserir “Andrei Rublev” no tempo histórico por meio do seu devir espiritual, rompendo com a linearidade das narrativas convencionais de heróis do passado.
Vladimir Menshov, Yuri Ozerov e Abraham Room
O ator e diretor Vladimir Menshov também será homenageado na programação, com exibições de dois filmes: a comédia romântica “Amor e Pombos”, de 1984, um dos filmes mais populares no ano em que foi exibido, e o drama “Moscou Não Acredita em Lágrimas”, de 1979, recordista de bilheteria e vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1981. Menshov faleceu em julho último, aos 81 anos, por complicações da Covid-19.
“Moscou não acredita em lágrimas”, exibido em 1980, atingiu a incrível marca de 75 milhões de entradas vendidas. Mesclando ideologia ortodoxa com valores socialistas, narra vinte anos na vida de três amigas, da juventude nos tempos de Khruschov à maturidade na era Brejnev, capturando aplausos dos ideólogos do Partido e do público em geral. A narrativa flui entre um ambiente urbano idealizado e uma representação do campo que remete à fartura dos filmes stalinistas: e interrupções breves, como a aparição do poeta (nada simpático à ortodoxia soviética) Andrei Voznesensky, recitando seus versos em Praça Maiakovski para uma multidão em êxtase. Tendo, em primeiro plano, a família como espaço afetivo, o filme fornece uma plataforma para conferir como a classe média moscovita processava noções de privado e público às vésperas da perestroika de Gorbachev: hoje, exibe um ar nostálgico e até certo ponto ingênuo, como os melodramas em geral, agregado à particularidade dos tempos em que foi produzido.
De Yuri Ozerov será projetada a série “Libertação”, cinco filmes que retratam momentos dramáticos da 2ª Guerra Mundial na campanha do Exército Vermelho. Recentemente restaurado pela Mosfilm em 4K, o épico é uma coprodução da União Soviético com Itália, Alemanha Oriental, Iugoslávia e Polônia. Ozerov o concebeu entre 1967 e 1971, em plena era Brejnev: são destacadas a batalha de Kursk, a travessia do Dnieper, a libertação de Kiev, a conferência de Teerã, as intensas batalhas por Berlim e a tomada do Reichstag, a rendição da Alemanha nazista e a conferência dos chefes da coalizão anti-Hitler em Yalta. A participação do personagem Stálin na obra aproxima-se da idealização veiculada nas produções soviéticas antes da morte do líder, em 1953: Stálin aparece como uma espécie de entidade metafísica, dotado de uma visão onisciente dos acontecimentos e seus desdobramentos. Brejnev sucedeu a Khruschov e amenizou, em certa medida, a orientação crítica oficial em relação ao legado de Stálin que seu antecessor preconizara – os filmes de Ozerov refletem essa mudança de rumo. Boa parte dos eventos históricos escolhidos em “Libertação” ocorre em terras ucranianas, ou próximas à Ucrânia.
No sábado, 12/03, às 17h, está prevista exibição especial do filme “Rua Mercantil Nº 3”, de 1927, realizado por Abraham Room, considerado uma das obras primas do cinema silencioso soviético. O longa será exibido com trilha sonora composta e executada ao vivo pela pianista Dudáh Lopes. Também conhecido como “Cama e Sofá”, ou ainda “Um trio de pequeno-burgueses: amor a três”, na tradução literal do original russo, retrata a rotina de um casal em seu apartamento, onde a insatisfação da esposa encontra eco na chegada de um hóspede inesperado, amigo do marido – um triângulo amoroso encenado com bom humor e sem falsos pudores, dirigido com precisão e estrelado por atores versáteis, Nikolai Batalov, Vladímir Fóguel e Lyudmila Semyonova. Sutis ironias em relação ao mundo contemporâneo socialista estimularam reações negativas à época na imprensa militante, sobretudo pela ausência de proletários na trama (permeando as críticas pairava um indisfarçável tom moralista). Ao fim, cansada do resiliente patriarcalismo dos parceiros, a personagem feminina recusa-se a fazer aborto (de quem seria o filho?) e abandona a ambos.
Completam a programação da Mostra: “Uma Banda Divertida” (1934), de Grigory Aleksandrov com música de Isaac Dunaevsky; “Ilia Muromets” (1956), do mestre da fantasia e dos efeitos especiais, Aleksandr Ptushko; “Os Ciganos Vão Para o Céu” (1976), de Emil Loteanu, recentemente restaurado em 4K; o drama autobiográfico “Os Órfãos” (1977), de Nikolai Gubenko; e o inédito “Vladivostok”, de 2021, dirigido por Anton Bormatov.
Programação Completa da 8ª Mostra Mosfilm
09/03 – Quarta Feira – Abertura
20h VLADIVOSTOK
10/03 – Quinta Feira
17h AMOR E POMBOS
20h OS CIGANOS VÃO PARA O CÉU
11/03 – Sexta Feira
17h MOSCOU NÃO ACREDITA EM LÁGRIMAS
20h O IDIOTA
12/03 – Sábado
17h RUA MERCANTIL Nº 3
20h LIBERTAÇÃO – PARTES 1 & 2
(O filme “Rua Mercantil nº 3” será exibido com trilha sonora composta e executada ao vivo pela pianista Dudah Lopes)
13/03 – Domingo
17h LIBERTAÇÃO – PARTE 3
20h LIBERTAÇÃO – PARTES 4 & 5
14/03 – Segunda Feira
17h UMA BANDA DIVERTIDA
20h ANDREI RUBLEV
15/03 – Terça Feira
17h ILIA MUROMETS
20h ENFERMARIA Nº 6
16/03 – Quarta Feira
17h OS ÓRFÃOS
20h MOSCOU NÃO ACREDITA EM LÁGRIMAS
17/03 – Quinta Feira
17h OS CIGANOS VÃO PARA O CÉU
20h OS ÓRFÃOS
18/03 – Sexta Feira
17h ENFERMARIA Nº 6
20h VLADIVOSTOK
19/03 – Sábado
17h AMOR E POMBOS
20h ANDREI RUBLEV
20/03 – Domingo
17h ILIA MUROMETS
20h MOSCOU NÃO ACREDITA EM LÁGRIMAS
21/03 – Segunda Feira
17h O IDIOTA
20h ANDREI RUBLEV
22/03 – Terça Feira
17h UMA BANDA DIVERTIDA
20h LIBERTAÇÃO – PARTES 1 & 2
23/03 – Quarta Feira
17h LIBERTAÇÃO – PARTE 3
20h LIBERTAÇÃO – PARTES 4 & 5
Serviço
8ª Mostra Mosfilm de Cinema Soviético e Russo
De 09/03 a 23/03/22
Local de exibição: CineSesc São Paulo
Rua Augusta, 2075 – Cerqueira César, São Paulo – SP
Telefone: (11) 3087-0500
Ingressos: R$ 20,00 (inteira) e R$ 10,00 (meia entrada)