Tribunal
Justiça
Por João Lanari Bo
Netflix
Vivemos em uma época em que, para muitos, o judiciário se confunde com o próprio Estado. Na vertigem desconstrucionista que singulariza o exercício do poder em algumas paragens do mundo de hoje, a vigilância do cumprimento das leis – atributo dos tribunais – é talvez a única instância a impor limites e restrições a líderes déspotas e autoritários: se o poder judiciário perde a independência, o chamado sistema democrático desaba. Tribunais, juízes, promotores e advogados são atores dessa dramatização, que o cinema se apropria a rodo: podemos afirmar que o código desse espaço dramático jaz internalizado em nosso aparato de leitura cinematográfica.
Mas a ineficiência do judiciário também pode deixar sequelas. “Tribunal”, em exibição na Netflix, atualiza essa dramatização em um contexto inusitado: nada menos do que a Índia, esse colossal país-seminal que desafia a razão ocidental. Um país que tem um pé no passado milenar e outro no século 21, convergindo numa espécie de modernidade disfuncional que é o tema do filme: tudo isso com uma linguagem sem caricaturas ou conversa fiada prescritiva, simplesmente mostrando as coisas como elas são, sem exageros ou artifícios. Desnecessário ressaltar, trata-se de uma produção a léguas de distância do universo glamouroso e escapista da famosa “Bollywood”.
Caro leitor, cabe aqui um disclaimer incontornável: estamos na Índia, país que produziu algo extravagante e supostamente homogêneo como “Bollywood”, mas que é na verdade absolutamente multicultural e multilíngue – só em “Tribunal” são faladas quatro línguas, dois dialetos locais mais hindi e inglês – e virtualmente hostil a leituras apressadas (incluindo a presente crítica). Vale o que diz a parábola chinesa, o outro colosso: quanto mais se conhece a Índia, menos se sabe sobre a Índia. Desconfie sempre dos turistas acidentais e viajantes curiosos. O cinema, entretanto, pode servir como janela eventual para um vislumbre dessa complexidade.
O enredo imaginado pelo diretor e roteirista, Chaitanya Tamhane, foi certeiro – apropriar-se de um tribunal de Mumbai como ponto focal para alguns dos muitos males da nação indiana, como: colonialismo, conflito geracional e sectário, arbítrio e perseguição política, negligência com trabalhadores da casta dos “impuros”. O gancho é o julgamento forjado de um poeta de protesto, um cantor folk portador de consciência social – alguém que teria induzido um de seus ouvintes, trabalhador encarregado de limpar esgotos, a cometer suicídio. A ação, construída com planos gerais e lentos, foca nas breves e inconclusivas sessões do tribunal: e nos entornos privados do advogado de defesa, um liberal batalhador de direitos humanos com dificuldade de se relacionar com os pais, e da promotora, uma conservadora que cozinha para a família e se diverte assistindo reacionárias peças de teatro satirizando imigrantes.
“Tribunal” é o filme de estreia de Tamhane, com 28 anos à época da produção: para escrever o roteiro, pesquisou durante anos o sistema judiciário de seu país, seus rituais (herança do colonialismo inglês), suas incongruências e redundâncias. Filmado em 45 dias, com oitenta por cento de atores não-profissionais, tomadas longas e contemplativas – mas com muita repetição dos takes para ajustar o realismo das cenas – “Tribunal” produz um distanciamento meditativo sobre esse painel social contraditório que é a Índia contemporânea. A intenção foi desdramatizar e ser o mais objetivo possível: poucos ou nenhum close, distância física entre lente e personagens mesmo nos momentos mais intensos, como quando o poeta é preso, ou comparece ao tribunal.
Business as usual é a tônica: o juiz, supersticioso e patriarcal na vida privada, preocupa-se em abreviar as sessões no tribunal e esvaziar qualquer manifestação contundente: e a polícia não se importa em trazer testemunhas falsas para corroborar o caso. Sabemos que é um absurdo a prisão do poeta se arrastar por protelações jurídicas, sabemos que as acusações são espúrias e forjadas, os personagens falam por si mesmos por meio de ações e diálogos, mas o filme não reitera ou explora dramaticamente o patético da situação: apenas deixa fluir o business as usual, reservando o final para desconstruir a objetividade – silenciosa e sutilmente.
“Tribunal”, por incrível que pareça, foi inspirado em um fato real: em 2007 o ativista cultural Jiten Marandi foi preso, principal acusado do massacre de Chilkari, quando 19 pessoas foram assassinadas por guerrilheiros “Naxals” – termo genérico usado para se referir a grupos de diferentes partes da Índia. Marandi, por meio de música, teatro e debates, era um contumaz crítico dos projetos faraônicos de desenvolvimento em seu estado natal, Jharkhand; deu o azar de compartilhar o nome com um comandante Naxal (e maoista) da área. Ficou seis anos definhando na cadeia até conseguir provar que era apenas Marandi, o poeta.