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Tony Manero

Cinema da Crueldade

Por João Lanari Bo

Festival de Cannes 2008

Tony Manero

o cinema nos assassina com reproduções de segunda mão (Antonin Artaud)

Tony Manero”, longa realizado por Pablo Larraín em 2008, é daqueles filmes em que o corpo do protagonista assume a centralidade das ações, em todos os sentidos. O dono do corpo chama-se Raúl Peralta, conhecido no cabaret sórdido e minúsculo onde vive e atua como Tony Manero – sua obsessão pelo dançarino que John Travolta viveu em “Embalos de sábado à noite” é um dos truques da narrativa, embora seja totalmente desconstruída ao longo da fita. Peralta assiste inúmeras vezes o filme, sozinho na plateia, repete falas em inglês de Tony – e transforma-se numa das figuras mais perturbadoras e intratáveis que alguém poderia conceber, graças à interpretação do ator Alfredo Castro.

Os embalos de Travolta servem como marco temporal para esse mergulho nos porões da miséria humana – o filme foi lançado em 1977, ano em que vicejava no Chile a ditadura comandada pelo General Augusto Pinochet. Assumindo o poder por meio de um golpe de Estado cinematográfico, em 11 de setembro de 1973 – aviões bombardeando o Palácio Presidencial em Santiago, com o Presidente Allende se matando (ou sendo assassinado) às 14h15 daquele dia – o General granjeou a reputação de um dos ditadores mais cruéis, senão do planeta, com certeza da América Latina (e a competição não é fácil). Seu regime foi marcado por constantes violações de direitos humanos, com mais de 80 mil presos e pelo menos 30 mil vítimas de torturas: segundo números oficiais, mais de três mil pessoas foram assassinadas.

Tony Manero” praticamente não faz referência a esses momentos tenebrosos – apenas breves imagens do General em alguma TV ligada, alusões espaçadas a uma atmosfera repressora. Tony é covarde, traiçoeiro, desprezível e insensível, mas atrelar esses traços como representativos do drama que estava acontecendo no país naqueles anos seria uma leitura forçada (à época, alguns críticos o fizeram). Talvez o melhor modo de acessar essa psique demente seja utilizar as reflexões de Antonin Artaud sobre o corpo do personagem: um local de experiência crua e visceral, capaz de transmitir respostas emocionais profundas e inconscientes. Nesse sentido, o corpo seria, como dizem os exegetas do teatro artaudiano:

uma “figura” figurativa e literal por meio da qual aspectos essenciais e primordiais da existência humana são comunicados visualmente, em vez de intelectualmente.

Algo que beira o irracional, portanto. Raúl “Tony” Peralta tem 52 anos, transita pelas bordas urbanas, cenários em decomposição ou em estado precário, começando pelo cabaret, principal espaço cênico do filme. Câmera na mão, imagem granulada e escura – “Tony Manero” foi rodado em Super 16 mm – ilustram a dramaticidade dos interiores e as ruas vazias e cinzentas por onde caminha (e corre) Raúl – nem a sala do cinema onde Travolta se exibe escapa desse abafamento visual. Um dos poucos contrastes, em termos de iluminação, são cenas que abrem e fecham o filme, tomadas no estúdio televisivo do programa Festival de la una, apresentado pelo popular Enrique Maluenda (em participação especial na produção de Parraín). Raúl almejava ganhar o concurso de melhor imitador, claro, de John Travolta.

O corpo desse andarilho sádico – Raúl escala uma rotatória de assassinatos, entre idas ao cinema e números de dança – movimenta-se por espasmos reativos, sintomas do desejo fragmentado que habita em algum lugar da sua “figura”. É tudo esquemático, seco, violento, mas contínuo. Seus crimes não tem um “nome jurídico” que os situe, como são os crimes cometidos, por exemplo, pela ditadura de Pinochet, ou qualquer outro crime inscrito nas leis. Ele age compulsivamente, enquadrado pela câmera nervosa e próxima, entre o desfoque e a opacidade. Dessa linguagem emana um rastro de desestabilização do círculo em volta de Raúl, que oscila entre sucesso e desastre, corpos doentes e fantasias de luxo e estrelato.

Raúl “Tony” Peralta fala pouco, e quando o faz parece dissociar a fala da enunciação, o que provoca pequenos intervalos de compreensão, conforme notado por comentadores da fita – e, em consequência, sabotando a fluidez da narrativa para a audiência, na continuidade dos diálogos editada no ritmo plano/contraplano, ou mesmo na expectativa lógica de ação/reação que antecede imagens de assassinatos.

Ao fim e ao cabo, Raúl Peralta completa uma genealogia da imagem que começa em Al Pacino, modelo do Tony Manero original (John Travolta), e desemboca na única redenção possível do Tony Manero segunda mão (Alfredo Castro) para escapar desse inferno – ganhar o concurso na TV.

4 Nota do Crítico 5 1

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