Tolos São Os Outros
Sacrifício pelo amor
Por Pedro Sales
Em uma narrativa densa emocionalmente, que lida com temáticas sensíveis, “Tolos são os Outros” fica em um limbo entre ideias radicais e um drama clássico. O filme dirigido pelo polonês Tomasz Wasilewski representa uma certa tradição do “filme de festival” europeu, ao misturar abordagem estética refinada com cenas, no mínimo, angustiantes. Esse fator, inclusive, pode afetar bastante a experiência e, naturalmente, tornar a obra divisiva e polêmica. Entretanto, é fato que o espectador vai sentir algo, independentemente de ter gostado ou não do filme. Isso se dá pela já citada abordagem do cineasta, mas também pela interpretação de Dorota Kolak. A atriz acaba sendo a principal força do filme, uma vez que concentra todos os dramas que se desenrolam com um semblante claro de desolação.
Quando Marlena (Dorota Kolak) recebe uma ligação, ela e seu marido Tomek (Lukasz Simlat), uns 20 anos mais novo, devem tomar uma decisão importante. O filho dela, Mikolaj (Tomasz Tyndyk), precisa de um acompanhamento integral. O homem se encontra em um estado catatônico cuja fragilidade física e mental são palpáveis. Assim, a mãe volta a cuidar do filho como se ele voltasse a ser criança, em uma dependência total dos cuidados alheios. A situação causa brigas entre o casal e aos poucos traz o passado à tona. Algo que fica claro desde o início da rodagem, e talvez nem tanto na apresentação da sinopse acima, é o clima de incerteza. Nos primeiros minutos, há um clima de suspensão, é certo que houve algum episódio traumático naquele núcleo familiar, apesar de latente. Um pouco parecido com aquele ditado que diz: “onde há fumaça, há fogo”. O problema oculto se torna cada vez mais perceptível com a alienação da protagonista.
O distanciamento é uma questão fundamental de “Tolos São os Outros“. Marlena e Tomek, por exemplo, vivem em uma região isolada, um prédio na beira da praia gélida, mas sem nada ao redor, além dos poucos vizinhos. O trabalho de câmera reforça essa sensação por meio de planos gerais, sobretudo na praia, que demonstram essa vastidão vazia. Mesmo com a protagonista distante dos demais, Wasilewski nunca abandona a personagem. Pelo contrário, ele coloca o espectador a par da solidão da personagem. Dividimos sua angústia, vemos seu rosto que dificilmente sorri ou esboça outra coisa além da preocupação e dor. Ela tenta entrar no mar, mas não consegue, o celular vibra e ela se sobressalta. Com essas pequenas cenas, o cineasta demonstra o desconforto de Marlena, que, na verdade, tem tudo para aumentar.
Ou seja, apesar da personagem alienada e solitária, ainda mais quando volta a cuidar do filho, é ela que sempre vemos. A companhia de Marlena é o público e a câmera. A fotografia assinada por Oleg Mutu, nesse sentido, tem uma alta predisposição por planos longos e também por planos sequências. Por mais que a duração dos planos sejam extensas, há um dinamismo por meio do movimento que acompanha os personagens. Outro ponto interessante é que, após Mikolaj voltar para casa da mãe para ser cuidado, os planos quase sempre se encerram evidenciando a porta aberta do quarto onde ele está. É como se fosse algo para sempre relembrar Marlena da presença do filho. Essa preocupação estética nos planos também passa pela iluminação muitas vezes pálida, que reflete a frieza tanto geográfica da Polônia quanto da alma dos personagens.
Contudo, essa preocupação estética excessiva com a forma em “Tolos São os Outros” leva ao questionamento: será que a obra não passa de uma exploração da dor? É sempre muito delicado lidar com temas sensíveis e não cair em um viés puramente exploratório. O caso deste filme não é esse, mas fica bem perto desse limiar. Ao retratar a extenuante rotina de cuidado, o longa provoca uma crescente angústia no público. Em um certo momento, o silêncio sepulcral que toma boa parte do filme ganha uma música de uivos e gritos de Mikolaj na cama. Até quando a mãe tenta fugir desse som sufocante, ele não para, na praia o barulho das focas parece formar uníssono com os lamentos do filho. Nesse sentido, o longa remete à novela de Tolstói, “A Morte de Ivan Ilitch”. A representação da doença terminal e da dor e peso na rede de apoio, temas comuns às duas obras, é talvez o ponto mais forte do filme.
Enquanto essa representação corresponde ao drama clássico, existe a tentativa de desenvolver ideias radicais. Como já foi citado, existe certo radicalismo na forma, opondo-se ao padrão da fotografia, por exemplo. Quando Wasilewski tenta trazer essa mesma ousadia para o conteúdo, no entanto, a obra cai drasticamente em qualidade. Existe uma cena no longa, um diálogo completamente expositivo que quebra com o clima inicial de incerteza, estranha por si só, mas que deveria servir de alerta. É óbvio que se o cineasta gasta uns dois minutos com uma cena gratuita, de alguma forma ele vai retomá-la. E é nisso que o filme desanda. O choque antes genuíno pela própria condição de Mikolaj e dos cuidados paliativos, torna-se posteriormente o choque pelo choque. A tentativa de transformar a história em um drama perturbador à moda de cineastas como o austríaco Michael Haneke ou o dinamarquês Lars Von Trier, só representa irregularidade criativa. Não pelo tema proposto, mas por uma questão de construção narrativa.
Portanto, “Tolos São os Outros” é uma obra com claros momentos dramáticos muito bem construídos. A representação da doença de Mikolaj e a entrega de Marlena possuem força e potencial emocional. O realismo é também grande responsável por isso. No entanto, a escolha de Wasilewski de se distanciar desse drama clássico para instaurar o choque no longa parece apenas uma tentativa frustrada de emular cineastas que imortalizaram uma filmografia de “dramas perturbadores”. Até mesmo a escolha do momento do filme para posicionar essas ideias parece algo impulsivo. Apesar dessa irregularidade temática do diretor, este é um filme que provoca o espectador, para o bem ou para o mal. O que fica da obra é a ambivalência do sacrifício pelo amor de Marlena. Com suas dores, dúvidas, traumas e conflitos, a protagonista é ambígua, sobretudo quando finalmente consegue entrar na água.