Todos Nós Desconhecidos
Espectros em acerto de contas com suas existências
Por Fabricio Duque
Durante o Festival do Rio 2023
Parece lógico que a vida de um ser humano aconteça exclusivamente, e de percepção misteriosa, na condução de sua própria existência (em participação solitária), em que é gerado uma jornada de propósitos. Sim, mesmo sem entender, nós, que somos partículas de energia universal, precisamos chegar a algum lugar, querer alguma coisa e provar que estamos no caminho correto. Tudo isso é mandatório e sem manual. Somos obrigados a experimentar sensações, sentimentos, causas e consequências, muito de tudo isso advindo das influências comportamentais do outro, o nosso “próximo”, que convive conosco em nosso meio social. É esse tempo do existir, essencialmente por nossas sinapses e campos mentais, que levamos para sempre, até morrermos. É inevitável que em algum momento nos perguntemos qual o sentido disso tudo. Mas passa rápido, porque já aprendemos a automação no próprio viver.
Uma dessas consequências dessa existência terrena é ter que lidar com as emoções e com desdobramentos da perda, o luto, por exemplo, que é um processo terapêutico de uma subjetiva reintegração individual (de aceitar a ida de quem amamos), que pode inclusive durar até mesmo quando não mais estamos no campo físico, num epitáfio catártico e/ou num psicológico juízo mental. Esse luto (e/ou a “prestação de contas”), com a própria vida em troca de uma silenciosa tranquilidade eterna, expõe o lado mais intrínseco e mais vulnerabilidade do ser humano. É ali que o indivíduo encontra sua mais pura verdade. Isso tudo é afetado memórias, bagunçadas na imaginação, projeção e proteção. Esse processo talvez seja o mais completo, transcendental e visceral das terapias. É por esse caminho que o longa-metragem “Todos Nós Desconhecidos” busca sua épica viagem-transe, pela metafísica sensorial, em uma fotografia estética e de atemporalidade revisitada que está entre a nostalgia de um passado pendente e o futuro almejado após as resoluções do presente. Há aqui a atmosfera de conexão pelo tempo suspenso, pela união de épocas, pelos atravessamentos nucleares das sinapses fragmentadas, desconstruídas, interrompidas e em estágio de religamento.
Talvez isso tudo se explique melhor por “Todos Nós Desconhecidos” ser filme baseado em uma obra japonesa, no livro de Taichi Yamada, “Strangers (Estranhos)”, de 1987, visto que toda essa narrativa fantasiosa cria uma surreal viagem de permissão existencial ao vagar no passado para reconstruir a dor. Aqui, não há importância se é realidade, fábula, “vida real” e/ou ficção. Nós somos convidados a embarcar em uma psicanalítica imersão na mente da protagonista, que evoca e personaliza seus amores, sua família, suas culpas, suas defesas, seus medos e suas lembranças felizes. Ao trazer de volta à vida seus “fantasmas”, nossa personagem consegue transitar dentro e fora de seus refúgios criados. Em “Todos Nós Desconhecidos” não há limites, tabus, politicamente incorretos, até porque tudo é um “bagunçado” e brainstorm fluxo constante de pensamentos e sensações. Nesta trama, o filho pode ter tesão reprimido do pai, sentir incompleto por causa do mãe, afastar-se dos match por questões de saúde. Assim, camadas e mais camadas são não só abordadas como se alimentam em co-dependências, em mundos seguros que todos nós (desconhecidos) mantemos em nossa mente e que de tempos em tempos a gente precisa visitá-los.
Dirigido pelo britânico Andrew Haigh (da série “Looking”, “Weekend”, “45 Anos”), “Todos Nós Desconhecidos” tem uma grande preocupação em traduzir detalhes, metáforas, queer style e sutilezas, talvez porque sofrer nos anos 80 é diferente do sofrer do agora. E lidar com o sexo também. Aqui, as cenas, ainda que não explícitas, conseguem o resultado extremamente realista-naturalista. Será loucura? Prolongar a vida de quem a gente ama em nosso mundo mental? Tanto faz. Quem tem o direito de dizer o que é certo ou errado no agir de nossas existências que estão “sempre fugindo”? Como disse, “Todos Nós Desconhecidos”, entre espectros, distâncias, febres e pousos, é um acerto de contas com as questões ainda não resolvidas e verdades não confessadas. Um juízo final para viver no andar de baixo ou subir para a cobertura, intercalando felicidades, decepções e o relacionamento perfeito que dura enquanto durar enquanto, vivo ou não, com ou não Pet Shop Boys e o “sempre estar na mente”. E “se parece real, é real”, até porque nossa vida na verdade é uma ilusão de ótica.
Outra coisa é que nunca devemos assistir a um filme quando estamos cansados. Minha primeira exibição foi no Festival do Rio 2023, o último filme do dia, após quatro. Naquele momento, não senti nada e o filme foi apresentado a mim como pretensioso. Tinha ido pelo campo do fetiche dos filmes gays, especialmente quando escala atores super queridinhos do momento, os inclinando a viver experiências homossexuais e homoeróticas. Sim, em “Todos Nós Desconhecidos” temos Andrew Scott (o “padre sexy” do seriado “Fleabag” e de “Ripley” – e que se assumiu bissexual – não que isso importo, mas que gera uma “possibilidade” no imaginário do mundo LGBTQIA+) e Paul Mescal (do seriado “Normal People”, “Aftersun”, o “mais desejado” dos atores – que causa ainda mais “desejo dúbio” por não se “pronunciar” sobre suas “predileções sexuais” – ao ficar no ar, o “povo pira”). Sim, e ainda tem a atriz Claire Foy e Jamie Bell. Pois é, lá eu achei o filme muito hipster superficial. Pois é, mas não é. Revendo, percebi (ainda bem que o cinema é assim: fazendo com que nós mudemos de opinião) uma maestria em toda a construção cênica, estética e interpretativa. “Todos Nós Desconhecidos” pode sim ser considerado uma obra-de-arte desse novíssimo hipster metafísico e de viés realista mágico que se apodera mais e mais das telas, saindo do submundo e ganhando o mainstream das coberturas, repleto de estrelas cadentes.