Toda Noite Estarei Lá
Os humilhados serão exaltados
Por Pedro Sales
Durante o Festival Olhar de Cinema 2023
A liberdade de culto e o direito de ir e vir são assegurados pela Constituição Federal, inclusive pelo mesmo artigo, o 5º. Apesar disso, Mel Rosário cabelereira transexual do Espírito Santo é impedida quase que diariamente de exercer tais direitos. A igreja que ela quer frequentar, uma unidade da Assembleia de Deus, recusa-se a deixá-la entrar, posicionando guardas na frente da porta. Dessa forma, ela é motivada a protestar, todas as noites, em frente à igreja, segurando cartazes com versículos e sermões, em um contraste claro entre protesto e louvor. No documentário “Toda Noite Estarei Lá”, longa que integra a mostra Competitiva Brasileira do 12º Festival Olhar de Cinema, as diretoras Tati Franklin e Suellen Vasconcellos trazem luz à relação pouco debatida entre fé e identidade de gênero. Ainda mais quando essa fé atravessa um discurso fundamentalista calcado no preconceito e nas promessas de danação.
Tudo começa em 2017, no meio de uma batalha judicial. Assembleia de Deus x Mel Rosário. De um lado, uma instituição religiosa lutando legalmente para impedir a entrada de uma pessoa em seus cultos, do outro, alguém que quer poder frequentar esse espaço e exercer sua fé. Nessa primeira parte, o filme encara o caráter jurídico do conflito. A equipe capta as consultorias jurídicas do advogado, vai até o fórum com o objetivo de gravar a audiência, mas acabam tendo que registrar apenas as portas fechadas, a pedido de uma das partes do processo, que, ironicamente, não quer ter seu direito violado. Dessa forma, as diretoras estabelecem uma abordagem cronológica dos fatos, acontecimentos como a resolução do STF que equiparou homofobia e transfobia ao racismo são alentos para Mel, que busca vencer na Justiça. E, de fato, ela consegue judicialmente o direito de frequentar o culto. Mas o advento da pandemia parece criar mais uma vez o mesmo problema.
Tá, e agora? Após esse aparente desfecho, o documentário tenta se sustentar em outros aspectos, como a vida pessoal da protagonista. Dessa forma, o longa se enquadra em diversas vertentes do gênero. Tati Franklin e Suellen Vasconcellos usam entrevistas, o método observacional, mas também exercem uma participação bastante perceptível. As diretoras se inserem, portanto, no filme como ativistas e companheiras de Mel durante esse processo. Por esse motivo, “Toda Noite Estarei Lá” ultrapassa o mero embate judicial e penetra no íntimo de Mel, o salão, suas realizações pessoais e sua posição política. Dentro da casa, a produção capta esses momentos familiares como a festa de aniversário. Completar 54 anos, sendo uma mulher trans no Brasil, é quase um milagre, uma vez que a expectativa de vida dessas pessoas não ultrapassa os 35 anos, segundo o relatório do Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais). A dádiva é tanta que Mel consegue até dobrar sua mãe, Testemunha de Jeová, para celebrar a festa.
Além da temática que, por si só, carrega muitas questões sobre o exercício da fé, transexualidade e ultraconservadorismo no meio neopentecostal, a obra é engrandecida pela presença magnética de Mel Rosário. A protagonista, mesmo com os problemas e provações que se prostram diante dela, está sempre confiante e esperançosa em mudar a situação. Com fé em Deus, ela acredita que os cartazes que ela mesma pinta com tanta dedicação conseguirão impactar as pessoas, sendo ela uma presença que ajuda a “aceitar as diferenças”. A risada cativante e seu senso de humor mordaz facilitam ainda mais a identificação com a personagem. Entretanto, é importante ressaltar que este não é um efeito estritamente fílmico. Na própria comunidade as pessoas se envolvem com o problema, alguns dos membros da Igreja desejam a “paz do Senhor” à irmã Mel, e outros questionam o porquê de ela querer estar em um lugar onde não a querem, afinal há tantas outras igrejas.
“Toda Noite Estarei Lá” é um documentário que, antes de tudo, nasce no tempo certo. A batalha entre Mel e Assembleia de Deus ganha diversas nuances à medida em que o país estava entregue a uma direita conservadora, a negação de sua parte como corpo da igreja se torna ideológica e política. Assim, a força do discurso se estabelece por duas razões: a temática e a presença de sua protagonista. A interseccionalidade entre a transexualidade e o culto evangélico é, por si só, um assunto dotado de muita complexidade, pois muitas vezes escapa aos debates da esfera religiosa e LGBTQIA+. Essa aparente contradição conta ainda coma figura de Mel Rosário, mulher de extrema fé e também resistência, se ela sai todas as noites com seus cartazes é porque ela crê na vitória, que os humilhados serão exaltados. Apesar disso, a direção de Tati Franklin e Suellen Vasconcellos é contrariada pelo destino e perde o foco central do embate jurídico, tentando consolidar o filme nas questões pessoais de Mel.