Time
Tempo é o que você faz dele
Por João Lanari Bo
Amazon Prime Video
O que chama a atenção logo de cara no documentário “Time”, da jovem realizadora negra Garrett Bradley, é a extrema concisão na montagem, opondo e contrapondo temporalidades, emoções e resistências. O que poderia soar artificial toma um sentido fluido, um sentido rizomático, para usar um adjetivo pretensioso – as microemoções parecem vazar dos corpos na tela e contagiar os pixels da imagem, seja na granulação dos mini-DVs, gravados ao longo dos longos anos de ausência do marido, seja no cinzento lavado da captação contemporânea. Sibil Verdad Fox, nome de solteira, Sibil Fox Richardson, de casada, é a âncora desse épico em escala psico-nanométrica: 20 anos atrás, ela, o marido e o sobrinho resolveram assaltar um banco, desesperados com as dívidas do business – uma loja de roupa hip-hop – uma decisão desesperada de pessoas desesperadas, como define Sibil. O assalto não deu certo: Sibil, também conhecida como Fox Rich, aceitou um plea deal e pegou 12 anos, saindo com três anos e meio; Robert, o marido, recusou o acordo, mal aconselhado pelo advogado, e pegou uma sentença irracional: 60 anos de prisão. “Time”, nos seus 81 minutos de duração, ilustra com delicadez e contundência como o Estado, através das instituições encarregadas de vigiar e punir, usa o próprio tempo de encarceramento como punição para desvirtuar de maneira torpe o curso da vida não apenas de Robert, mas do círculo à sua volta, em especial da família.
O filme, visto desse ângulo, assemelha-se a um loop interminável, uma eterna batalha articulada por Sibil para reverter esse absurdo, sempre rechaçada. Bradley conheceu Sibil quando realizou seu curta “Alone”, em 2017, exibido em Sundance e patrocinado pelo New York Times: “Alone” – que também trata de encarceramento e impacto nas famílias negras – e “Time” são produções-irmãs, diz a diretora. Durante as filmagens do curta, Bradley entrou no google e localizou a organização FFLIC, “Families and Friends of Louisiana’s Encarcerated Children”, onde Fox Rich liderava: a confiança entre as duas se estabeleceu, e a ideia de fazer um segundo doc foi natural. A surpresa veio quando Fox, no final das filmagens, entregou-lhe uma bolsa com 100 horas de mini-DVs, 18 anos de gravações que abrangiam brincadeiras de seus seis filhos, reuniões familiares, palestras, festas de aniversário, passeios de carro, atividades escolares e depoimentos confessionais. O que era para ser um curta virou um longa. O espectro de registros era um desafio: foram vários os pontos de vista de quem segurava a câmera e filmava; filhos, amigos, a própria Fox e a equipe de Bradley. Uma boa ideia: passar todo o material dos tapes antigos para preto e branco, realçando o contraste e aproximando fisicamente o espectador; e também manter o frame original para contrastar com os enquadramentos das tomadas profissionais da equipe. Montar tudo isso, fazer com que a acumulação dos passados preencha o presente e projete o futuro – uma espécie de ótica pasoliniana do tempo – não foi uma tarefa trivial.
Salta aos olhos, inevitavelmente, o carisma de Fox Rich, sua notável capacidade oratória, construída ao longo dos anos de sofrimento. Em “Time”, Bradley a mostra, paciente, ligando para oficiais de gabinete dos juízes, a procura de informações sobre comutação da pena de Robert: a mostra nos discursos comunitários, na igreja, nas escolas; e nos momentos de decepção, de incerteza. Mas Bradley não cai na armadilha sentimental, até porque Fox não deixaria: ela também mostra os filhos em debates estudantis, em cerimônia de formatura; mostra a intimidade de um exercício de francês entre mãe e filho (em 2013 a família mudou-se para Nova Orleans). Mostra, enfim, a resistência ao massacre temporal promovido pelo Estado. Para Fox, que se tornou uma business woman, “o tempo é quando você olha as fotos de quando seus bebês eram pequenos, e então olha para eles e vê que eles têm bigodes e barbas e que a maior esperança que você tinha era que antes de se transformarem em homens, eles iriam têm a chance de estar com seu pai”. Para seu filho Justus: “Tempo é o que você faz dele. O tempo é imparcial. O tempo está perdido. O tempo voa. Esta situação já faz muito tempo. Muito tempo”. Interpretar o sentido do tempo, para a família Richardson, é uma forma de resistência, de racionalização da ausência do marido e pai.
Robert ficou preso na Penitenciária do Estado da Louisiana, conhecida como “Angola”, e apelidada de “Alcatraz do Sul”, “A Plantação de Angola” ou “A Fazenda”. É a maior prisão de segurança máxima dos Estados Unidos, com 6.300 presos e 1.800 funcionários: tem campo de golfe, estação de rádio e TV, pista de pouso para aviões, criação de cavalos e um museu, ademais das instalações habituais desse tipo de instituição. O nome “Angola” foi uma “homenagem” à antiga plantação que ocupava a área, nomeada em referência ao país africano – tão próximo de nós, brasileiros – que foi a origem de muitos escravos trazidos para a Louisiana. Uma das possibilidades de acelerar a saída de Robert era eventual corte orçamentário na penitenciária, que estimularia perdões. Fox não hesita em qualificar o sistema correcional das prisões como escravidão moderna. “Time” deu a Bradley o prêmio de Melhor Direção de Documentário, no Festival de Cinema de Sundance de 2020, e está indicado ao Oscar 2021.