Curta Paranagua 2024

Termodielétrico

Uma saudade de Ametista

Por João Lanari Bo

Festival do Rio 2023

Termodielétrico

Tive uma joia nos meus dedos —

E adormeci —

Quente era o dia, tédio os ventos —

“É minha”, eu disse —

Acordo — e os meus honestos dedos

(Foi-se a Gema) censuro —

Uma saudade de Ametista

É o que eu possuo —

(Emily Dickinson, tradução Augusto de Campos)

Não é todo dia que aparece um documentário com um título criptografado – “Termodielétrico” – que se quer, mais do que documentar um objeto, um filme-ensaio. Algo associado ao poético e ao experimental, mas, nesse caso, mais, ainda: associado também ao educacional – a vida e a obra do físico brasileiro Joaquim da Costa Ribeiro (1906-1960), avô da realizadora Ana Costa Ribeiro e pai do também físico Sérgio Costa Ribeiro. Num país de poucos heróis, como se queixava o poeta Gerardo Mello Mourão, a escassez é mais gritante no campo da ciência. Malgrado a excelência da vários dos abnegados – entre eles o foco do filme em tela – esse conjunto notável de cérebros parece habitar uma espécie de periferia do capitalismo midiático. Signo do atraso, óbvio.

Em tempos de pandemia foi possível, finalmente, um debate científico acalorado – deflagrado por uma dialética negativa patética, mas, enfim, deflagrado. Conceitos submersos no imaginário contemporâneo vieram à tona: uma verdadeira epistemologia popular ocupou o primeiro plano das atenções sociais, trazendo um turbilhão de assunções e terminologias até então distantes do respeitável público. “Termodielétrico” aposta, num certo sentido, no vácuo desse momento vertiginoso, propondo algo básico: divulgação científica. Em última análise, sensibilização da audiência para a importância e, sobretudo, para a beleza – melhor dizendo, para a beleza pura da prática da ciência.

Para cumprir um tal objetivo, nada mais conveniente do que propor um rigoroso discurso do método. Não apenas do método da ciência, mas do método poético: a narrativa se organiza em camadas superpostas de memória – filmes em 8mm, cartas, fotos – e descrições em detalhe de objetos de pesquisa, mineralogia e carnaúba. A voz da narradora, a própria diretora, oscila entre vivências afetivas e esclarecimentos técnicos, numa medida que comporta esses dois universos – poesia e ciência. Por exemplo, cristal. Consultando o oráculo da internet, cristal é

Uma forma da matéria na qual as partículas constituintes estão agregadas regularmente, criando uma estrutura cristalina que se manifesta macroscopicamente por assumir a forma externa de um sólido de faces planas regularmente arranjadas, em geral com elevado grau de simetria tridimensional

Adentrar um cristal, mergulhar no interior de arestas e ângulos, é como se fosse uma experiência poética: uma luz que se difrata e se distrai, que provoca sensação de prazer no espectador, no limite, uma apreensão fetichista – imagens-afeto e imagem-cristal, diria Deleuze. A deposição milenar de segmentos e resíduos já é, também, metáfora poética. A deposição das memórias afetivas que conformam os sujeitos consolida as estruturas do parentesco, consolida o sujeito-do-conhecimento que ausculta aquelas reentrâncias, aquelas interseções de planos que friccionam as partículas. O percurso de Costa Ribeiro, afinal.

Termodielétrico” é sua grande descoberta, em 1944: observando a cera extraída da carnaúba, árvore do semiárido nordestino, ele notou que quando um dielétrico (isolante) é submetido a mudança de estado físico, ocorre o surgimento de correntes elétricas enquanto ocorrer tal mudança de estado, em especial de sólido para líquido e vice-versa. Foi um feito: apesar disso, em 1950 dois americanos publicaram artigo descrevendo o mesmo fenômeno, observado por eles na transição entre água e gelo. Apesar protestos de cientistas brasileiros, ainda hoje a eletrificação de materiais isolantes na mudança de fase pode aparecer com o nome de “efeito Workman-Reynolds” – ciência e poder.

Costa Ribeiro viveu numa época de vertigem, a ciência como artefato radical de destruição, a bomba atômica de Hiroshima e Nagasaki. A ciência como instrumento radical de poder, como se extrai das ameaças constantes de Putin e acólitos de utilizar o arsenal nuclear russo, o maior do planeta, na guerra da Ucrânia.

Pai de nove filhos, Joaquim da Costa Ribeiro inscreve-se também no mundo da poesia, nesse poema – recitado no filme – de Manuel Bandeira, escrito quando da morte da esposa do cientista, aos 45 anos:

Joaquim, a vontade do Senhor é às vezes difícil de aceitar.

Tanto Simeão desejo de ouvir o celeste chamado!

Por que então chamar a que estava apenas a meio de sua tarefa?

                A indispensável?

                A insubstituível?

                (Por isso sorri com lágrimas quando te vi, antes da missa,                                                               

                                                               ajeitar o laço de fita nos cabelos de tua caçulinha.)

Ah, bem sei, Joaquim, que o teu coração é tão grande quanto o da mãe melhor.

Mas que tristeza! Ela foi demais, estou de mal com Deus.

– Joaquim, a vontade do Senhor é às vezes inaceitável.

(Manuel Bandeira)

4 Nota do Crítico 5 1

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