Sucession
Capitalismo à outrance
Por João Lanari Bo
HBO Max
A série produzida pela HBO “Sucession” é mais um desses fenômenos televisivos da era do streaming: inaugurada em junho de 2018, as peripécias do magnata da mídia Logan Roy (Brian Cox), seus filhos e o entorno subserviente atravessou três temporadas e adentra a quarta, com a certeza, enfim, de que será a última! Se havia alguma dúvida de que o britânico Jesse Armstrong garantiu seu lugar na first league dos criadores de narrativas na TV, a decisão de abrir a temporada com o anúncio do fim fechou a questão. Para ele, aliás, o título do programa diz tudo: estamos às voltas com uma sucessão, ou seja, processo de transferência da responsabilidade de gestão de uma organização dos dirigentes atuais para a próxima geração de gestores. Um tema banal, batido até o passado mais remoto: sucessões monárquicas, religiosas, rodízio de poder, Shakespeare que o diga.
A aventura humana sobre a terra sempre teve de lidar com esses ritos de passagem – no capitalismo overexcited dos nossos dias, em particular no mundo anglo-saxão, o rodízio pode assumir ares de pantomima sado-neurótica, em que Logan não hesita em exibir um comportamento errático e agressivo, calçado num poder absoluto e (quase) sem limites: estar à sua volta é um risco permanente de destruição psicológica. Salvam-se os de língua afiada, ou cotovelos afiados. Diálogos curtos e secos exprimem essa pancadaria verbal com argúcia e humor, méritos da série.
Afinal de contas, do que as séries norte-americanas de TV são sintoma? François Jost, um renomado pensador da telinha, esclarece: série significa repetição, que remete a uma certa pulsão infantil. Voltamos aos episódios como quem volta a um objeto parcial de desejo, diria Freud. Mas a hipótese de Jost vai além do formato da repetição: o sucesso das séries norte-americanas é fomentado muito mais pelo benefício simbólico proporcionado aos telespectadores do que pelos procedimentos técnicos de produção, que são apenas uma soma de códigos. Claro, bons roteiros e boas interpretações ajudam, mas o que importa mesmo são as brechas e fissuras por meio das quais flui nossa adesão ao universo ficcional proposto.
Como se dá essa identificação ficcional com o nosso mundo familiar? François Jost percebe três vias de acesso: a primeira seria a atualidade, composta por duas faces, a dispersão e a persistência.
A dispersão é a espuma do dia a dia, aparição e desaparição de acontecimentos que atravessam a vida das pessoas e das mídias … Uma despressurização da ficção e sua absorção pela realidade. A persistência são os acontecimentos percebidos como contemporâneos, lugares comuns transnacionais que jazem no fundo do cérebro e povoam as narrativas.
A segunda via de acesso — e chave do sucesso global das séries — é o que Jost chama de universalidade antropológica. Mesmo se os heróis não se pareçam na superfície com nossos modos e comportamentos, suas aventuras e complicações sentimentais os aproximam de nós, telespectadores: “Sucession”, com sua representação das alucinadas mazelas que informam as decisões no exacerbado mundo capitalista das mídias, é obviamente estranho à grande maioria dos mortais. A esperteza de Amstrong foi construir a série com base numa reflexão sobre a família e sobre cada um de nós. Receita conhecida, mas eficiente.
Mas é na terceira via de acesso que Jost realça a característica mais saliente das modernas séries americanas: a midiatização, ou seja, a estratégia das séries de sempre utilizar a intermediação de uma imagem para se comunicar com a realidade — imagens que falam com imagens, ad infinitum. A profusão de telas (e imagens) que nos assedia em nossas vidas digitais concorre certamente para uma intensificação da ideia de que o mundo existe primeiramente pela midiatização, pela tela do computador e, sobretudo, pela tela do smartphone.
Nessa toada, a deterioração da condição cognitiva de Logan obriga a que uma decisão sobre a sucessão seja tomada o quanto antes: depois de três temporadas de manipulações recorrentes e cruéis, pontuadas por breves tréguas, prenúncio de novas crueldades, finalmente os irmãos – Kendall (Jeremy Strong), Shiv (Sarah Snook) e Roman (Kieran Culkin) – resolvem se unir para resgatar o império midiático da deriva gerencial. A morte do patriarca é o twist plot também óbvio, mas inserido com extrema acurácia, que vira o jogo.
“Sucession” destaca-se nas cenas de telefonemas apressados. São essas ligações que eletrizam os momentos dramáticos, da comédia à ação, do insulto à humilhação – a morte do patriarca é narrada, ou midiatizada, pelo celular voice over. A partir daí, ocorre a transferência da paranoia despótica de Logan – esse era seu método de gestão do capital – para cada um dos filhos, dividida em cotas psicológicas de acordo com a formação (e a deformação) de cada um. O capitalismo predatório se reorganiza e segue em frente.