Su Friedrich e o Lugar em que viemos e para onde vamos
Olhar retrospectivo no Festival Olhar de Cinema de Curitiba e as outras imagens para o invisível
Por Ciro Araujo
O trabalho da curadoria é comparável ao da montagem. Na realidade, em um campo de vista mais simplificado, é inclusive difícil encontrar diferenças: ambos podem atuar sob vias de censura e imposição, os dois preservam a imagem apesar da mecânica ser tecnicamente distinta e possuir um olhar é essencial. Claro, a análise como já descrita é simplória e inclusive para quem for da área, ignorante. Mas não nega o fato de ser comparável ao trabalho de edição.
Durante o Olhar Retrospectivo, mostra atrelada ao 11º Olhar de Cinema, apareceu como protagonista a cineasta Su Friedrich. Nome conhecido pelos States, aqui no Brasil, segundo a própria, é a primeira vez que tem seus filmes exibidos, ao menos, de forma oficial. Esse anonimato trouxe em uma determinada sessão o interesse: dois medias-metragens que passariam um atrás do outro, sob o pretexto de se complementarem. Ora, novamente, o trabalho de curadoria, de conectar a lógica encontrada para um público maior. Se a programação resolveu que era atraente dois filmes seguidos, havia algo ali.
“Os Laços Que Unem”, realizado em 1984, foi o primeiro dessa apresentação, importando um “quê” do francês Alain Resnais em “Noite e Neblina”, discutivelmente sua magnum opus. Michael Haneke, outro cineasta europeu – dessa vez austríaco – em uma conversa famosa e milhares de vezes compartilhada, trata sobre o assunto da segunda guerra e como falar sobre campos de concentração. Ele critica “A Lista de Schindler” em frente à diversos realizadores americanos, citando o filme de Resnais. A realidade muitas vezes era áurea, como fantasmas, pois nada se via. No filme de Su, ela desenvolve o projeto através de imagens em 16mm de um passado que assombra, mas é também desconhecido. Desmembramentos e desencontros, enquanto entrevista sua mãe, o alvo que viria a ser protagonista da seleção do dia.
A sobrevivência de uma mulher que viveu sua vida sem casa, sem moradia; Não literal, claro, mas sendo puxada sempre para um novo lugar. A ascensão do nazismo e como afetou uma família que não era necessariamente judia, mas que procurara não se associar com o partido e nem suas ideologias. A mãe de Friederich demonstra o ruído e realidade ocorrida durante a Segunda Guerra. Tal qual “Noite e Neblina” nos apresenta um desfoque proposital da imagem para alienar, ela – a mãe da cineasta – demonstra desconhecimento sobre campos de concentração à época e o silenciamento produzido pelo gabinete de propaganda nazista.
Essas dores, quase tomadas pela filha, finalizam o curta e a narrativa sobre sua progenitora. Ao menos até que o segundo filme entra na sequência. Agora estamos em 2016, trinta e dois anos se passaram. Vemos a mesma mulher que minutos antes falava um inglês com leve sotaque germânico, com uma voz trêmula e idosa. O impacto é direto como uma bala, mas serve como experimento para o que viria a seguir. “Eu Não Posso Dizer O Que Sinto” agora é digital, foge da película e de sua estética enevoada. Persegue na verdade um estilo documental fora da performance, pois Lore Friedrich, mãe de Su, não parece ter completo conhecimento de que ela está sendo entrevistada, ao contrário da primeira média-metragem.
Susan – nome completo do diminutivo Su – decide mostrar suas aflições, apesar da protagonista ser sua mãe, que agora sofre com as tristes ações do tempo: a demência em sua pessoa a torna alguém dependente e próxima de amargura. Em um determinado momento, ela perde a lucidez e acusa, particularmente para sua filha, que o porteiro de seu prédio a roubara. Su Friedrich filma com muita força no que é um momento de dificuldade e intimidade. São reações entre seus irmãos e dinâmica familiar diante da etapa de vida na qual a maior das preocupações torna-se o testamento e últimos desejos estarem a par.
Nesse segundo filme selecionado, o foco em um ensaio documental transforma seus momentos em cenas relatáveis. Muito provavelmente o espectador ao assistir os filmes encontrará lutas que presenciou e o resultado, alguns anos após. Essa sequência da curadoria liga uma espécie de chavinha no sensorial, a emoção toca a pele e inclusive é difícil não chorar, chocado por momentos de identificação. Lore pergunta logo após saírem de uma visita aos advogados: “Por quê você não me ama?” e ela despista em seguida quando sua filha responde indignada. Um teste comum para identificar qual seria a reação, o sentimento de esquecimento e debilidade afetiva. Su sabe do que se propõe, é seu filme, ora, mas também compreende os excessos cometidos em obras audiovisuais sobre envelhecimento. Através de sua narração que funciona mais como comentário – eis o ensaio – a diretora traduz a pessoalidade para um sabor agridoce. Talvez mais “agri” que “doce”, já que existe um sarcasmo muito inerente nesse processo de vida dela aceitar a demência progressiva de sua mãe.
E o filme finaliza em seus quarenta e dois minutos, deixando um sabor de abrupto. O raro caso em que o criticado é na verdade sua curta duração. Facilmente argumentado também que ele se fecha em um momento ideal, no silêncio enquanto a câmera captura flores. Todavia, o sabor para o espectador importa e Su nos deixa com ímpeto de assistir um registro pessoal relatável, agora em comunhão com todos que possuem o mesmo sentimento.
O relato encontrado aqui é decorrência dessa exibição dupla de “Os Laços Que Unem” e “Eu Não Posso Dizer O Que Sinto”. Como afirmado, ambos possuem uma espécie de sequência, que a curadoria do Olhar de Cinema compreendeu muito bem ao selecioná-los. É impactante, cortante e emocionante, traduzindo-se em um belo pontapé para a cineasta Su Friedrich, que não seria introduzida aqui no Brasil não fosse o festival. Se por acaso o leitor se interessar pelas obras da cineasta norte-americana, a recomendação fica para seguir essa montagem sensível selecionada a dedo. É necessária e diz muito para onde todos vamos. E não há o que temer, mesmo temendo-se.