Sonhar Com Leões

Um filme sem pena

Por Fabricio Duque

Assistido presencialmente no Festival de Cinema de Gramado 2025

Sonhar Com Leões

Mesmo com toda a evolução da humanidade, o ser humano parece ainda não ter se acostumado com a questão da morte (fato inevitável do processo da própria vida), talvez por todo um imaginário popular “influenciado” que sempre escolheu a suavização poética da ideia (mais fantasiosa) que a aceitação (mais realista) de sua característica orgânica e fisiológico, que se decompõe em putrefação. Sim, morrer é deixar o corpo que se “habita”. Causa sofrimento, violência e ausência, principalmente nos mais “emocionados sentimentais” que ficam. Mas se pensarmos sobre a existência humana, podemos até ensaiar uma polêmica-tabu, altamente desconfortável, quiça herege, que é: quem tem o direito sobre o corpo de alguém? Por que não podemos morrer se este for nossa vontade? Um que disso é o caminho seguido para discussão proposta do longa-metragem “Sonhar Com Leões”, do realizador Paolo Marinou-Blanco, exibido na mostra competitiva do Festival de Cinema de Gramado 2025. Sim, este é um filme que divide opiniões, éticas e principalmente moralidades, talvez ainda mais se o espectador for brasileiro, que vê na morte apenas uma iminência, um fim distante que pode ser “esperado”, “protegido” por uma incondicional esperança.

“Sonhar Com Leões” é um filme desconcertante, mas sua narrativa, ao nos conduzir pela comédia mórbida do humor absurdo, amortece a carga dramática do tema, que é o direito de morrer. E então: o corpo que nós habitamos em vida é nosso ou uma propriedade legal-governamental? Esta obra é também sobre os “azarados” em tentativas de suicídio e logo se inicia com uma cena bem realista bem à moda Quentin Tarantino. Sim, este é um filme que incomoda (tanto que a primeira coisa que me perguntei quando o longa acabou foi se eu já tive pensamentos suicidas). Pois é. Até na coletiva de imprensa um participante disse que talvez fosse melhor inserir um aviso para “alertar” e não “despertar” gatinhos. Sim, mas é aí que mora toda a sua maestria, porque nós somos tratados como seres humanizados e empáticos, e não conservadores à ideologia universal da preservação da vida acima de todas as coisas, inclusive o sofrer. Contra a “satisfação do ser humano”. Recentemente, o cineasta Pedro Almodóvar trouxe esse tema da eutanásia com seu drama “O Quarto Ao Lado”. Por que então aqui o desencadeamento da história seria diferente, ainda mais pela comédia? Se a morte está tão certa e se há um “mercado” sempre vantajoso financeiramente (vide as propagandas cômicas da Sinai Plano Funeral), então qual o problema de se “brincar” com a verdade em tom de ficção.

“Sonhar Com Leões” é sim diferente de tudo o que vimos no cinema brasileiro. É uma distopia da “dignidade: nossa vida, nossa morte”. E também, especialmente, sobre a questão da narrativa da quarta parede, que praticamente todo mundo lembrou do seriado “Fleabag”, mas todo mundo esqueceu que a TV Pirata já fazia isso. Ao conversar e explicar para a câmera suas dificuldades, em flashbacks mais teatrais (e reconstituídos), a protagonista, “possuída” por uma impecável e insana Denise Fraga, “planta” em “Sonhar Com Leões” a semente do começo da discussão ético-social. O humor (que se deve muito a Denise, uma atriz brechtiana – que busca naturalizar o estranhamento, muito em subtextos atravessados), também bem português, na terapia de grupo, que cita mortes por self (e “velórios fun”), dita toda a condução do filme. É perspicaz, patológico, paradoxal, visceral, direto, afiado, sagaz sádico, articulado, cruel e cortante como uma navalha. Tudo aqui busca a exposição dialética, para assim “atiçar” a postura crítica em relação às cenas, entre planos, contra-planos, cachorros que falam e “O Velho e o Mar”, de Ernest Hemingway.

“Sonhar Com Leões” é também um processo nosso de se “acostumar” (e começar a ter afinidade) com a morte “sem pena”, não ver heresias em “roubar flores das mãos do morto” e/ou “assistir” sacos na cabeça. Por que vivemos a burocracia “Maracangalha” da morte? São felizes enquanto esperam? Mudaram de ideia porque alguém os entende? A eutanásia pode ser uma forma mais digna ao ser? Sofrer até o último momento é uma benção de Deus? Perguntas, perguntas, algumas ainda retóricas. Nós percebemos também os espaços enormes entre o mundo dela e o dele. Como mensurar a vontade do outro? Receber o diagnóstico de câncer legitima a escolha da finitude? Quer ou não? Sabe-se por completo? E se mudar de opinião? Pois é, “Sonhar Com Leões” é isso tudo e “muito bom”.

4 Nota do Crítico 5 1

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