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Sonata de Tóquio

Clair de Lune

Por João Lanari Bo

Festival de Cannes 2008

Sonata de Tóquio

Reza a lenda que Claude Debussy inspirou-se para escrever “Clair de Lune” ao avistar o clarão da Lua cheia sobre a capital francesa, na sacada de um prédio, num momento de extrema solidão. Não se sabe qual foi a inspiração que levou Kyoshi Kurosawa a realizar “Sonata de Tóquio”, em 2008: o que se sabe é que a composição de Debussy, atravessada por melancolia e júbilo, desempenha um papel fundamental na estrutura do filme, mesmo que executada apenas uma vez, na sequência final. Estrutura, aliás, revelada no próprio título – sonata é uma composição para instrumentos solistas, geralmente piano, em três movimentos (normalmente dois rápidos e um lento), sendo um deles escrito na forma tradicional (exposição, desenvolvimento, reexposição).

Não é a primeira vez que o termo aparece no cinema; “Sonata de Outono”, que Bergman fez em 1978, é um ilustre antecessor. Kurosawa é um dos realizadores mais inteligentes de seu país e dos mais atilados da cena internacional. Passou anos transitando no “J-horror”, cinema de gênero – mais acessível às audiências, segundo Kurosawa: você começa com o gênero, que é ficção, e gradualmente se move em direção à realidade, dizia. No meio do caminho, em algum lugar, descobre o filme. “Sonata de Tóquio” incorporou o drama familiar no repertório do diretor, na melhor escola de Ozu e Naruse – e a carreira de Kurosawa deu mais um salto qualitativo.

O pano-de-fundo do filme é a crise financeira que afetou os países ricos na primeira década do século 21, que no Japão se materializou com desemprego para assalariados antes estáveis, nas sólidas corporações do país. Muitos, ocupantes de lifetime jobs, foram surpreendidos. O personagem de Kurosawa, Ryuhei Sasaki, perde seu emprego e não conta à esposa, andando em círculos até que a crise se instala no recinto do lar. Sua reação inicial é fingir que ainda está empregado. O drama que carrega contamina as relações familiares e os outros membros da família tomam caminhos diversos para lidar com a situação: o filho mais novo, Kenji, choca-se com o professor e deseja ter aulas de piano, à revelia do pai; Takashi, de dezessete anos, entra e sai sem horários, evitando o pai, e resolve alistar-se no exército estadunidense, também à revelia do pai. A esposa de Ryuhei e mãe dos meninos, Megumi, desdobra-se na limpeza e na alimentação da família – e no apaziguamento das tensões.

A lenta e corrosiva fragmentação da família moderna japonesa, objeto do cinema clássico pós-guerra no Japão, atualiza-se na “Sonata de Tóquio”. A rígida hierarquia familiar, centralizada no pai e ancorada na leal submissão da mãe, desestabiliza-se lentamente, sem possibilidade aparente de recomposição. Poucos closes dos personagens e uma rigorosa geometria do espaço interno caseiro – referência a Ozu, já embutida no título – enquadram a família, como nas cenas de jantar, denotando isolamento e claustrofobia. A mise-en-scène, combinando posições da câmara e direção de atores, permite a exposição das sutis variações emocionais que sustentam a trama, à espera do movimento que irá deflagrar a revelação do segredo de Ryuhei.

O rigor das imagens projeta-se também nas opções cromáticas da fotografia. Marrons amarelados, cinzas azuis, e um eventual laranja dominam a cena. O mundo aos olhos de Ryhuei desaba rapidamente – engaja-se como faxineiro em um shopping center, limpando banheiros como o personagem de Wim Wenders em “Dias Perfeitos”. Não tarda para que a esposa finalmente descubra o engodo – nesse ponto “Sonata de Tóquio” acelera o compasso e abandona o realismo dramático, ingressando numa espécie de alucinação subjetiva, alavancada pelo pilar oculto da família, Megumi, esposa e mãe.

No meio do caminho, em algum lugar, (o espectador) descobre o filme: o agente desse corte epistemológico é um ladrão desajeitado que invade o lar dos Sasakis, e sequestra Megumi. O ladrão – vivido por Koji Yakusho, o protagonista do filme de Wenders – consuma o racha familiar. Os planos dos dois em fuga no carro, captados com retroprojeção, marca registrada de Kurosawa, são um dos pontos altos do filme.

Pausa para reflexão: vários meses se passam, anos talvez, o sistema que organizava a vida daquelas pessoas ordinárias se recompõe.

E Kenji apresenta-se na escola de música tocando “Clair de Lune”. A sonoridade das notas de Debussy toma o ar da sala, filmada de diferentes pontos de observação: em cada um, uma luz, uma respiração, um ritmo. Nós, distantes observadores do cinema japonês, imergimos na sala, no espaço e no tempo da música.

5 Nota do Crítico 5 1

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