Sinfonia de um Homem Comum
Nem tudo é verdade
Por Pedro Mesquita
Durante o É Tudo Verdade 2022
A cena inicial de “Sinfonia de um Homem Comum” nos remete de fato à prática musical: um pianista experiente realiza uma passagem de som num teatro, junto da orquestra com quem está prestes a tocar. Furioso, ele reclama do piano de má qualidade que lhe foi disponibilizado; exige que troquem por outro melhor, ameaçando desistir da apresentação. Uma vez satisfeito o seu desejo, ele retoma o trabalho.
Essa postura intransigente da personagem é um prenúncio do comportamento que ela adotará no resto do filme, quando veremos desenrolar as suas atividades na sua profissão anterior: descobrimos que este homem é José Maurício Bustani, diplomata que serviu como diretor-geral da Organização para a Proibição de Armas Químicas (OPAQ) entre 1997 e 2002. Agora aposentado, ele rememora, junto à equipe do documentário, os bastidores do momento mais turbulento de sua carreira, a sua deposição do cargo.
Para que o espectador partilhe da dor da sua protagonista, um trabalho de contextualização é necessário. O filme passa, então, por um pequeno desvio: inicia-se uma exposição — bastante didática e protocolar, como é de se esperar de uma obra coproduzida pela Globo — acerca das tensões geopolíticas entre Estados Unidos e Iraque, explicitando o interesse econômico dos primeiros no território dos últimos. Após o atentado de 11 de setembro, Bush ganha respaldo popular para implementar a sua política de Guerra ao Terror e invadir o país do Oriente Médio. Para tal, a justificativa era a seguinte: o Iraque possui armas de destruição em massa e, por isso, é uma ameaça a ser neutralizada.
É aí que Bustani entra em cena: diretor-geral da OPAQ, ele se aproxima do Iraque propondo que o país se torne signatário da Convenção de Armas Químicas, o que provaria que eles não possuem as tais armas de destruição em massa. Isso não era do interesse dos Estados Unidos — que desejavam a guerra — e, por isso, tornou Bustani um adversário do governo norte-americano.
Com isso, inicia-se uma forte campanha com o objetivo de tirá-lo do cargo. Por meio de uma série de táticas sujas — manipulação da opinião pública, espionagem, decretos arbitrários, compra de votos — o governo Bush consegue enfim articular a retirada de Bustani do cargo, criando as condições ideais para a eclosão de uma guerra. Eis que nos aparece um pensamento curioso: do festival É Tudo Verdade sai uma obra cujo assunto principal é, ironicamente, o processo de fabricação de mentiras. “Sinfonia de um Homem Comum” é um filme sobre a relação desonesta entre o governo de uma nação e o seu povo, especialmente quando aquele se vê na situação de buscar aprovação popular para medidas normalmente impopulares (um exemplo disso é o porta-voz de Bush entrevistado pela equipe do filme, que admite ter deixado escapar várias mentiras ao longo do seu tempo de serviço, e que seus superiores não tinham nenhum apreço pela verdade).
Essa ideia da desonestidade é reforçada no filme pela presença simultânea de um grande número de personagens, cada um contando a sua versão da história, a fim de oferecer um retrato mais rico da situação: vemos o discurso oficial (criado pelo governo norte-americano), após o qual entra alguma personagem o desmentindo, após a qual entra uma outra personagem desmentindo a anterior… no entanto, essa corrente costuma se encerrar com Bustani, que serve como o árbitro do filme e pode dizer as coisas como elas realmente aconteceram.
Aí moram as limitações de “Sinfonia de um Homem Comum”. Talvez, portanto, os parágrafos anteriores tenham parecido demasiadamente elogiosos ao filme, fazendo-o se passar por algo que ele não é. Não estamos diante de um ensaio sobre o hard power das grandes potências mundiais, muito menos sobre a impossibilidade do acesso à verdade através de imagens (isso Jean Rouch fez com muito mais êxito). Nada disso: “Sinfonia de um Homem Comum” ainda é, no final das contas, um filme sobre José Bustani; não à toa iniciamos e encerramos com imagens de sua vida após a política. “Sinfonia…” rejeita a possibilidade de um recorte temporal mais amplo — com o qual ele até flerta, retratando ao final a “história se repetindo como farsa” nas mãos de Trump e Bolsonaro — em favor do retrato mais íntimo de um homem cujo heroísmo reside no simples fato de ser “comum”. O seu idealismo moral é a fonte de identificação com o espectador ao mesmo tempo em que é a sua ruína num mundo de pragmáticos (e corruptos).
Estaríamos mentindo se não disséssemos estar diante de um filme competente. Mas que outros elogios ainda podemos fazer a uma obra cujas melhores qualidades lhe são externas (o trabalho de pesquisa; o amplo acesso a entrevistados; a sua “utilidade pública”)? Em verdade, “Sinfonia de um Homem Comum” veste-se como mais um daqueles documentários hagiográficos institucionais tão em voga hoje em dia, nos quais estúdios como a Netflix têm se especializado. Pois bem, a Globo mostra que não fica muito atrás.
3 Comentários para "Sinfonia de um Homem Comum"
Nestes tempos sombrios que correm, neste país de fracos, perversos e omissos, termos o resgate do exemplo de uma resistência moral tão corajosa não é para se menosprezar. Sua crítica pretensiosa e azeda apenas faz parte desses mesmos tempos sombrios!
Deixei meu comentário e, provavelmente, foi censurado!
Isso não apenas depõe contra o seu blog, mas confirma as minhas suposições?
Sinais dos tempos, muito triste isso…
Olá, censura nunca! Xô repressão! Apenas uma pequena demora nossa de colocar os comentários na página! Muito obrigado por participar!