Síndrome Astênica
Bipolar Energy
Por João Lanari Bo
Festival de Berlim 1990
Essa foi a expressão – bipolar energy – utilizada pelo veterano crítico Jonathan Rosenbaum para configurar o pique de linguagem da cineasta soviética Kira Murátova (1934-2018) – por “soviética” entenda-se um mosaico de culturas e nacionalidades, origens e assimilações, agrupadas, a força ou por consentimento, sob a égide do Partido Comunista em Moscou. O fato é que Kira rodou seus filmes quase sempre em Odessa, bela cidade situada às margens do Mar Negro, na Ucrânia – a um passo do cenário da guerra promovida pelo enlouquecido Putin (vez ou outra chegam notícias de mísseis russos caindo por ali).
Talvez o melhor produto da linguagem bipolar de Murátova, seguindo a leitura de Rosenbaum, seja o virulento “Síndrome Astênica”, finalizado em 1989, ano em que o colosso soviético desmoronava a olhos vistos.
Sim, a olhos vistos – e Kira Murátova estava sem dúvida entre quem melhor sabia enxergar o que se passava. Seu filme começa em preto e branco, acompanhando o desesperado luto de uma médica – à beira, ou em pleno ataque de nervos, no enterro do marido. Tudo é destruição, nada faz sentido com a perda: a personagem se esgota em si mesma (metáfora dos tempos?), tudo é compulsão de morte. Ela foge de tudo e encontra por acaso um parceiro sexual, que aparece na sequência em nu frontal – choque na censura moralista, agravado com frontal feminino na segunda parte do filme: “Síndrome Astênica” foi o único produto cultural a ser proibido na União Soviética durante a perestroika.
Corte súbito: passamos para uma sala de cinema, a cores, onde a viúva-atriz prepara-se para debater com o público na estreia do filme dentro do filme.
O templo cinematográfico – a sala de exibição – é o grau zero da narrativa que se desdobra, fluindo entre situações de conflito e apaziguamento, repetições e duplos – recursos prediletos da cineasta – a fim de descortinar a organização do real fragmentado que se encontra fora, é claro, das salas de cinema. Quem puxa os acontecimentos é um professor exausto e desiludido que adormeceu durante a exibição do filme em preto e branco, vítima de uma recorrente síndrome astênica – fadiga que toma conta, a qualquer momento, de seu organismo e de sua alma. Ele entra em cena dormindo no debate, dorme novamente no metrô lotado, dorme na reunião de professores, dorme diante dos alunos, dorme para proteger-se diante do caos que se configura em torno dele.
O sono astênico do personagem é o epicentro de diálogos disruptivos, carregados ou não de humor, mas sempre insistente sobre semelhanças que revelam diferenças. Repetição para Murátova é uma ferramenta conceitual para trabalhar a representação – as falas são repetidas, às vezes com mudanças de tonalidades, com o fim precípuo de gerarem uma sonoridade de espelhos, labiríntica e superficial. Segundo ela, “Síndrome Astênica” é um enorme mosaico feito de uma infinidade de pequenos pedaços, que se montam de alguma forma.
Alguma forma: Rosenbaum salienta a forma “desconcertante” da linguagem dos filmes de Kira Murátova, que flertam com o espectador ao mesmo tempo que “batem várias portas na cara” desse mesmo espectador. Onde encontrar o sentido geral da continuidade e coerência que emana dessa energia bipolar? Não há realismo psicológico, menos ainda realismo social, o que sobra são comentários críticos sobre não importa quais convenções, dos dispositivos de representação ao que se imagina o que é a natureza da vida social.
O homem é o animal que vai ao cinema (Giorgio Agamben)
Sobram também os animais, um dos suportes mais apreciados por Kira para veicular comentários sobre humanos. Logo no início, um gato é atormentado por trabalhadores da construção civil em um fosso que remete à sepultura do cemitério que vem a seguir (o gato, claro, escapa). Perto do final, cachorros desolados e desesperançados aguardam almas caridosas num canil público. No meio, um apaixonado colecionador de passarinhos persegue o gato guloso da filha que ouve rock.
Nancy Condee, leitora atenta da cineasta, sugere que o universo cinematográfico de Murátova funciona como um zoológico cheio de criaturas humanas e não humanas. Quando cachorros atraem a empatia dos humanos, não é a bondade inerente aos animais que se destaca: é a ausência da razão humana, embora incidental, que sobressai.
“Síndrome Astênica” foi considerado o último filme soviético e o primeiro filme pós-soviético, ponto imaginário da vertigem que dominou aquele limiar histórico. Mas Kira Murátova foi além: capturou o momento e o transcendeu.