She Came to Me
Teatros em busca de válvulas de escape
Por Fabricio Duque
Durante o Festival de Berlim 2023
Uma das características já observadas da realizadora norteamericana Rebecca Miller é construir as narrativas de seus filmes pela utilização de uma potencializada e explícita artificialidade teatral, isso objetiva criticar a estrutura robótica de sua sociedade, a mesma que vive a pressão de nunca conseguir o que quer, e sim o que os outros esperam e retroalimentam sem complexos e aprofundados questionamentos. Assim, qualquer tentativa de se descolar desse mundo já pré-montado pode ser julgado como loucura. Nessa ambientação, arquitetada pela filha do dramaturgo Arthur Miller, a “verdade” nunca está lá fora. Apresenta-se no círculo da hipocrisia, sempre velada, escondida e metaforizada em roteiros de filmes, músicas e, neste caso, em espetáculos de Óperas contemporâneas (ainda que a referência seja mesmo a tragédia La Boheme). Seu novo filme, “She Came to Me”, que abriu o Festival de Berlim 2023, na Mostra Especial da Berlinale, não poderia ser diferente, até porque Rebecca sabe que é preciso aceitar as regras para estar no jogo, e em especial porque a escalação de seu longa-metragem traz artistas famosos de nomes conceituados como Marisa Tomei, a sempre “O Meu Primo Vinny”; Anne Hathaway, a sempre assistente de “O Diabo Veste Prada”; e Peter Dinklage, que sempre trará nas costas o personagem do seriado “Game of Thrones”; e Joanna Kulig.
Vamos então por partes, visto que há muitos filmes dentro de “She Came to Me”. Muitas histórias paralelas e que se misturam. Cada uma busca “ajudar” no desenvolvimento da outra complementar. Mas todas dançam no ritmo do humor idiossincrático, em que manias ditam a condução a uma estranheza possível. Contudo, nós só percebemos tudo isso quase no meio, o que faz com que o espectador perca interesse pelas vidas que assiste. O início é tão amadoramente superficial, que a sensação que temos é a de que são robôs programados em multitarefas (não muitas, senão quebram). Sim, o público já viu muitos filmes assim. Essa estrutura já é batida. Talvez o motivo desse massificação pode ser entendido pela própria análise antropológica da sociedade norte-americana, que demora a aceitar mudanças. É um TOC. Um cognitivo transtorno obsessivo que respira sempre o mesmo ar para se sentir seguro e no controle dos acontecimentos, evitando ao máximo a vulnerabilidade.
“She Came to Me” apropria-se muito pouco dos momentos mais existencialistas. Talvez quando o protagonista compositor anda com seu cachorro, talvez quando o mesmo é surpreendido por uma mulher tão diferente que chega a despertar nele o fascínio. Talvez quando a esposa desse personagem principal limpa a casa (sua válvula de escape contra o surto iminente). Talvez quando a metáfora da liberdade vem por Delaware (estado que assinou a Constituição dos Estados Unidos da América). Sim, esses instantes reverberam a ideia de que seres sociais são na essência humanos. Mas na maior parte do tempo, os gatilhos comuns, os clichês comportamentais, a música sentimental, um que câmera lenta de Terence Malick, frases de efeito, tom açucarado, diálogos apelativos ao humor desconfortável, como “nozes = hepatite”. Em certo momento, uma conversa lança que o que eles querem é “quebrar padrões”. Mas como? Talvez não pelo artifício de sonho real. E ou de descambar à ação direta e “irreal”. Ainda que urgentemente comece a “rachar” tudo, ainda assim, já é tarde. Nós já fomos induzidos a desistir das novidades consequentes, como a libertação pela “adoração pela Igreja”.
Sim, nós também já entendemos que há um lado podre dentro deles que mascara essa culpa nunca entendida por eles e que embala os falsos costumes perante os outros. Quando a vida que imita a arte é invertida, a satisfação de um pode ser a esperança do outro. Sim, de novo, aqui é tudo sobre um, sobre o outro e sobre a falta de espaço. Se viajarmos muito em nossas ideias, podemos até dizer que “She Came to Me” é um exercício de auto-ajuda. Um manual de uma norte-americana ao povo da América, que lutou tanto pela liberdade de expressão, que agora cai na própria armadilha, acordando assim todos os números, gêneros e graus do conservadorismo. Que pode usar armas, mas não pode amar se for duas pessoas do mesmo sexo. Sim, já vimos isso também em inúmeros outros filmes, mas talvez a mensagem de “She Came to Me” é a de que é preciso discursar e discursar ainda mais, até que se torne um modelo padronizado de estilo de vida, com música final (e nova) de Bruce Springsteen, “Addicted to Romance”. Concluindo, a solidão nunca nos abandonará, porque nascemos, vivemos e morreremos sozinhos.