Shanghai
Corrupção e Política
Por João Lanari Bo
Festival de Toronto 2012
“Shanghai”, de 2012, é um thriller político indiano dirigido por Dibakar Banerjee, prolífico e competente diretor, também produtor: seus filmes narram histórias excepcionais de pessoas comuns, e o cineasta, fazendo longas desde 2006, criou um nicho para si mesmo nesse oceano de produções cinematográficas que identificamos pela alcunha genérica de Bollywood. Para ele, o homem comum e simples é a base do cinema indiano: o herói “machista” é sobretudo um produto do patriarcado. A palavra patriarcado possui, nesse imenso e complexo país, um sentido milenar e, portanto, historicamente dotado de um peso especial: a despeito de toda a modernidade tecnológica que os futurólogos de plantão querem impingir à Índia do século 21, a famigerada sociedade de castas continua de alguma forma presente na estrutura psicossocial da nação, disseminada nos 1 bilhão e 399 milhões de habitantes – este é o número de 2021, segundo projeções da ONU. Banerjee, que trabalha dentro do que se convencionou chamar de “cinema de gênero”, atrelado ao mercado, não se intimida: seja nas comédias, nos melodramas, até mesmo nas histórias que tratam de sexualidade, o que se vê no seu cinema de tonalidades realistas é um ataque muito significativo ao patriarcado, e é por isso que estamos vendo novos heróis no cinema indiano, como ele enfatiza. Thriller político também é um gênero cinematográfico, ainda mais se a obra em tela é inspirada no livro de Vassilis Vassilikos, o grego que escreveu Z – e que gerou o famoso filme homônimo de Costa-Gavras, de 1967.
Corrupção e política, temperado com violência, mortes e até mesmo números musicais: afinal de contas estamos em Bollywood. Esta, a receita de “Shanghai”, que se pretende, obviamente, um raio-X das armações político-regionais em curso no continente indiano. Ao examinar as consequências de um crime político, seu acobertamento e as consequências trágicas, o que se fala é sobre hegemonia econômica, poder político e o Estado. Logo de cara ocorre o evento central da trama – o assassinato do ativista social e professor que mora em Nova York, opositor ferrenho do partido local. Na sequência, a narrativa empodera o espectador e transforma a investigação oficial da morte do ativista num jogo farsesco, demolindo camada por camada a sustentação espúria por trás da fachada do poder. Tudo isso, claro, sob o frisson do thriller, e com uma nota de ironia subjacente: apesar do tradicional alerta dos letreiros iniciais – qualquer semelhança com pessoas ou fatos verdadeiros é mera coincidência – o que acontece, hélas, é a maldita coincidência. O filme se passa na cidade fictícia de Bharat Nagar, saudada como um exemplo de progresso por meio da expansão desenfreada de construções de infraestrutura. O governo estadual está planejando construir um Parque Internacional de Negócios na cidade, sugerindo uma competição imaginária com a poderosa Xangai, na China. Nesse roldão entram policiais e burocratas corruptos, uma governadora politicamente dissoluta, populares sob o jugo de milicianos, uma ex-aluna e amante, jornalistas e um produtor de filmes eróticos. O tratamento do roteiro sugere uma proximidade com a estética masala – palavra hindi que denota uma mistura de especiarias; no cinema bollywoodiano o termo designa filmes que misturam traços de diferentes gêneros.
Qualquer afirmação sobre política na Índia, desnecessário ressaltar, corre o risco de precipitação e incerteza entrópica, dadas as dimensões em jogo. O microcosmo descrito em “Shanghai” serve para propósitos dramáticos, em particular para uma crítica às políticas desenvolvimentistas feitas a toque de caixa em países como Índia e China. Na península indiana, são 28 estados e 8 territórios da União: não há uma língua nacional, mas a constituição indiana menciona especificamente que o idioma oficial é o hindi. Outros 22 idiomas são falados nos estados, mais um sem número de dialetos: as fronteiras estaduais, depois da descolonização do domínio inglês, foram reorientadas segundo critérios linguísticos. O inglês, falado por uma parcela cada vez menor da população, ainda é a linguagem utilizada no Judiciário. É um desafio incomensurável gerenciar tudo isso. Nepotismo e corrupção são termos frequentes nos comentários sobre a cena política na Índia: uma boa quantia de dinheiro é necessária para ganhar eleições, fonte do nexo político-capitalista que aparece no filme de Dibakar Banerjee. O sistema, apesar de tudo, é democrático: a Índia é a maior democracia do mundo, e uma das economias com maior taxa de crescimento. Os céticos e os realistas diriam: não dá para fazer omelete sem quebrar ovos.