Secreto e Proibido
Íntimo e Radicalizador
Por Daniel Guimarães
Netflix
É inquestionável que a impressão geral de haver uma grande diferenciação do documentário para a ficção, tendo em vista o “realismo” do primeiro, é equivocada. O recorte narrativo – o que mostrar, que pontos evidenciar, quais ignorar – está presentes em ambos. Eduardo Coutinho cria, em “Jogo de Cena”, a maior prova sobre esta natureza do documentário e da encenação. Entretanto, há uma sensação diferente que acredito ser inerente quando experienciamos a imagem que não é vendida como encenada, mas como a história real de cidadãos comuns. Spike Lee utiliza perfeitamente desta impressão quando quebra nosso confortável vínculo com a ficção ao nos arrebentar com a realidade no final de “Infiltrado na Klan”. Dentro desse conceito, “Secreto e Proibido” impacta justamente por se aproximar tanto e tão rapidamente das pessoas que filma, mas também por criar uma atmosfera sufocante, aproveitando-se do documental para retratar o preconceito sofrido na vida das protagonistas.
Dirigido por Chris Bolan, o documentário conta a história de Terry Donahue e Pat Henschel, que, já idosas, assumem para conhecidos e familiares que seu vínculo vai além da amizade. São um casal há mais de 60 anos. Se inicialmente destaquei o fator do realismo documental para ressaltar a dor das pessoas, o filme se beneficia também em outro espectro. O casal de velhinhas é quase ficcional no sentido de suas personalidades. Soa como uma encenação quando percebemos que Terry é uma caricatura da fofura. Engraçada, doce, carinhosa, é uma figura vibrante. Já Pat é uma figura mais séria e fechada, beirando o ranzinza, mas que ama e trata sua companheira com o máximo de amor possível. Logo, em um filme que se propõe a exclusivamente retratar o casal, em suas felicidades, angústias e histórias, a narrativa flui em uma alternância excepcional.
Por suas características tão marcantes e arquetípicas, “Secreto e Proibido” pode utilizar-se de um certo estilo ficcional através das duas “personagens” ao mesmo tempo da materialidade do real quando retrata a violência homofóbica sofrida pelo casal gay durante diferentes momentos de suas trajetórias. Em sua estrutura e montagem, exibe sempre um certo ciclo de renovação para o casal. Elas precisam se mudar da casa que vivem e encontrar um novo lugar que seja mais saudável para ambas. Entretanto, enquanto o dilema do futuro vigora, conta-se a caminho de Terry e Pat, de pretendentes homens à história feminista e talvez pioneira nos esportes femininos, seguindo um ritmo de evolução que transborda ainda aos seus 70 anos. Sempre se mantendo abertas a novas experiências, exalta-se a força de ambas.
A banalização que assumimos ao lidar com a violência do preconceito é saltada aos olhos ao assistirmos um filme como “Secreto e Proibido”. Estamos tão cientes do falso moralismo assassino que nos rodeia, que por vezes é necessário que obras nos radicalizem, que nos incomodem. Longe de uma obra feroz e ácida, mas “Secreto e Proibido” nos indigna pelo retrato da violência frente a beleza e inocência. É enfurecedor assistir Pat sendo forçada a rasgar o nome do destinatário das cartas de amor que enviava a Terry, por medo de descobrirem sobre seu romance. Também o fato de terem escondido, de pessoas que amam, seus relacionamento até os 70 anos de idade. É um filme que trabalha em cima de sensações nesse sentido. Nos apresenta pessoas tão carismáticas e singelas fugindo de uma implacável, imoral e criminosa perseguição. Surge como um tapa para acordarmos da inércia que vivemos presenciando a violência física e de discurso que impera contra toda uma população.
“Secreto e Proibido” é eficiente em suas duas vertentes. A primeira, claro, a instigante e excepcional história de Terry e Pat. A segunda em um olhar revoltante sobre as regras morais de uma época que, deixa-se claro, não está tão distante assim. Para isso, utiliza-se de gravações nos dias recentes, em interações com as duas e seus familiares na resolução de seus problemas, intercaladas com vídeos e inúmeras interessantes fotografias de arquivo. Satisfatório é assistir um documentário americano que fuja do muitas vezes formulaico estilo estadunidense de escolher um tema específico e, na montagem, intercalar entrevistas de especialistas sobre o assunto. Aqui, ainda existe alguns momentos do tipo, porém são pequenos e inofensivos. O grande mérito e legado de lendários documentaristas que “Secreto e Proibido” realiza, é compreender que, se aproximando de pessoas para ir em direção a um tema, e não o contrário, é uma fenomenal forma de uma identificação e vínculo emocional.