Santino
Um homem e os segredos da natureza
Por Pedro Sales
Durante o Festival É Tudo Verdade 2023
A morte é uma das certezas mais misteriosas para a humanidade. Certeza por ser evidente que tudo tem um fim, inclusive a vida humana. Misteriosa pelo fato de ninguém saber ao certo o que acontece depois da morte. Claro, existem explicações religiosas em que o ser alcança a vida eterna, ou retorna de maneira reencarnada, mas todas essas respostas deixam os descrentes com um pé atrás em um tema com prevalência da fé em detrimento da razão. Sentado em uma lápide, um homem explica que ele quem realiza os funerais na região, ele que prepara o caminho para as almas seguirem de um plano ao outro. Sua espiritualidade é muito própria, se difere do que estamos acostumados. Ele conta ao diretor Cao Guimarães, entrevistado pelo Vertentes do Cinema em 2018, sua cosmovisão e crenças. “Santino“, o veredeiro que dá nome ao documentário, acredita em outros planos, na existência de um mundo de fadas e na missão universal do homem em tornar o mundo um lugar melhor através da preservação da natureza.
O cineasta Cao Guimarães chega ao seu 11º longa-metragem, entretanto, apesar da experiência, preserva seu característico estilo de narrativa documental. Em “Andarilho” (2007), o documentário acompanha três homens que vivem em uma situação constante de nomadismo. Em “A Alma do Osso” (2004), o personagem principal é um eremita que mora há mais de 40 anos em cavernas. Observa-se, portanto, que o diretor possui uma predileção por histórias de pessoas marginais, que estão distantes do que é o comum. É como se o interesse de Guimarães fosse psicológico. Em vez de concentrar a visão em grupos sociais específicos, ele se preocupa com indivíduos insólitos que, de alguma forma, representam um isolamento social ao se distanciarem da realidade urbana dominante no país. Até em seu longa de ficção, “O Homem das Multidões” (2013), codirigido com Marcelo Gomes e disponível na Netflix, a questão da solidão e do não-pertencimento é constantemente evocada.
Em “Santino” essa lógica permanece. O personagem-título é uma pessoa que facilmente causa estranhamento, não só por suas crendices e especulações místicas e metafísicas – isso é o de menos –, mas por seu contato íntimo e sagrado com a natureza. É, na realidade, até triste constatar que uma pessoa comprometida com a preservação da fauna e flora brasileira seja uma exceção. Além da manutenção da riqueza natural do cerrado mineiro, ele resguarda também um saber esquecido: o saber mítico e popular. O veredeiro representa o pensamento e o conhecimento ancestral. São muitas vezes que ele cita o que “os antigos falavam” ou o que “os antigos faziam”. Nesse contexto, a medicina natural e o uso de plantas medicinais demonstram a aplicabilidade e concretude do saber dele.
A exposição das crenças de Santino, contudo, por vezes soa repetitiva e redundante. A ideia da conexão genuína entre ele e o espaço natural já é prontamente apreendida. Guimarães propõe uma dinâmica e contraponto ao teor expositivo com a visão da esposa do homem. Ela demonstra que, mesmo que ele seja uma espécie de bastião do saber popular e místico do cerrado, ele parece ser o último representante dessa tradição. A hereditariedade do conhecimento não é possível, pois a esposa às vezes teme os efeitos que os medicamentos naturais podem causar. Seria interessante a abordagem da visão das próprias filhas e qual a opinião delas diante da relação do pai com a fauna e flora da região. O que acontece, por outro lado, é que elas mal falam diante das câmeras, apenas ocupam o mesmo espaço, só que sem voz alguma.
Ao longo de “Santino“, uma das sensações que prevalece é que o protagonista não foi feito para nosso tempo. Não que ele seja “atrasado”, “primitivo” ou algo do tipo. Longe disso. Na realidade, parece que o mundo é que não está pronto para pessoas como ele. A hostilidade e a ganância que destroem o meio natural se alastram àqueles que possuem uma sensibilidade apurada diante da criação divina. O desinteresse de alguns adolescentes em ouvir os relatos não chega a manifestar isso tão claramente quanto o fato do vizinho tentar se aproveitar dele e das árvores de seu terreno. Cabe citar também que, vivendo nesse mundo tecnológico, o veredeiro consegue adaptar o tradicionalismo (saber popular) ao modernismo (saber científico), ele faz gambiarras para moer, compra baterias e cuida sozinho do sistema elétrico de sua casa. Ou seja, Santino reúne o natural ao tecnológico.
Um ponto específico da filmografia de Cao Guimarães é a temporalidade dos planos e a dilatação do tempo. Em “O Homem das Multidões”, por exemplo, o diretor flerta com a estética do cinema de fluxo e, por que não, do slow-cinema. Neste documentário não é diferente. O uso do silêncio e de planos contemplativos faz com que o espectador “perceba o tempo passar”, são nesses momentos, também, que a obra consegue se aproximar mais do abstrato. Alguns planos-detalhe estáticos mostram essa dinâmica entre os vestígios urbanos no ambiente rural, em outros, não há preocupação com o descritivismo visual, as águas turvas demoram a revelar o que são, as labaredas da fogueira pulam no céu escuro. Esses momentos de “respiros”, além da clara intenção estética, convidam à reflexão, tanto dos planos anteriores quanto da imagem em si.
“Santino” é um documentário que explora um homem e os segredos da natureza. Guimarães consegue habilmente imergir o público na diferente realidade do veredeiro, sem juízos quanto à fé sincrética e mágica na natureza, mas com um visível respeito e admiração diante dele. O discurso preservacionista do protagonista extrapola a questão da pequena vereda e dos benefícios medicinais das plantas e, de forma latente dialoga com as questões de preservação no país, ou melhor, na falta de preservação e exploração vegetal ostensiva. Santino é um dos últimos de sua geração, ele resguarda o saber popular e o transmite para as novas gerações. Sua missão nesse plano, de fazer um mundo melhor, parece, para mim, cumprida.