Sans Soleil
Ficção científica xamânica
Por João Lanari Bo
Mubi
Chris Marker definitivamente é um ser que veio do futuro, pernoitou na nossa combalida era e partiu. “Sans Soleil”, de 1983, esse filme-ensaio que desafia os exegetas, parece ser a caixa preta das mensagens cifradas largadas na correnteza pelo viajante no tempo: as imagens saltam oceanos e continentes, a estrutura é musical e epistolar – uma voz feminina lê e comenta cartas de Sandor Krasna, cameraman freelancer e ficcional, que se dirigem ao … autor do filme. Ele escreve: “Depois de algumas viagens ao redor do mundo, apenas a banalidade ainda me interessa. Eu a persegui nesta viagem com a implacabilidade de um caçador de recompensas”. Tóquio, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Francisco, Islândia…somos expostos a uma sucessão de instantâneos fotográficos, partículas de tempo, verdadeiras brechas quânticas – o adjetivo é pretensioso, ninguém sabe direito o que significa “quântico”, mas de alguma forma cabe na linguagem de Marker. Afinal, “Sans Soleil” é também ficção científica, outro território conhecido do realizador, como diz Sandor:
Este é um ponto de partida. Agora, por que esse corte no tempo, esse encaixe de recordações? Precisamente, ele não consegue entender. Ele não é de outro planeta, ele é de nosso futuro: 4001, o momento em que o cérebro humano atingiu o estágio de pleno emprego. Tudo funciona à perfeição, naquilo que o resto de nós deixa dormir, incluindo a memória. Consequência lógica: a memória total é a memória anestesiada.
Sandor, o alter ego de Marker, demarca temporalmente a ficção documental do filme: ficção é também uma forma de idealizar e documentar a realidade, hibridizando sons e imagens até desestabilizar nossa compreensão. Seria a ficção científica um prolongamento do lado documental ou vice-versa? Tóquio, capital do planeta Japão, é um dos centros deslocados desse percurso: é uma uma cidade em estado permanente de performance, que se compraz em autorreproduzir-se, como na cena dos “homens pobres” assistindo à luta de sumô em uma parede de monitores de TV. As lojas de departamento, templo-fetiche do consumo, tem escalas musicais nos degraus: imagens e propaganda abundam, é o império dos signos, como dizia Roland Barthes. E os sons dos videogames hipnotizam, o amigo Hayao inventa videogames com sua máquina: “para me fazer feliz, ele deixa entrar meus animais de estimação, o gato e a coruja”. Segundo Hayao, a matéria eletrônica é a única que pode processar sentimento, memória e imaginação. E mais, ainda de acordo com o amigo japonês:
Se as imagens do presente não mudam, (vamos) mudar as imagens do passado … Ele me mostrou as lutas dos anos 60 processadas por seu sintetizador. Imagens menos mentirosas, disse ele com convicção fanática, do que as que você vê na televisão. Pelo menos elas se dão pelo que são, imagens, não a forma transportável e compacta de uma realidade já inacessível. Hayao chama o mundo de sua máquina de: A Zona – em homenagem a Tarkovski.
“Sans Soleil” viaja no tempo e espaço. Na Islândia, abre-se uma lacuna na cena inicial das crianças: cinco anos depois, o vulcão da ilha havia acordado, e a cidade ficou sob cinzas. Forma-se uma melancolia da passagem do tempo, no mesmo espaço. O presente se separa da memória por um colapso. O mundo sem sol é um mundo cicatrizado por lacunas, da Islândia à Guiné-Bissau: neste país esquecido, membro da comunidade de países de língua portuguesa, a melancolia do tempo é dramática. O líder revolucionário Amílcar Cabral foi assassinado pelos seus próprios correligionários: sua sucessão aterrissou em disputas sectárias, onde os tiranos prevalecem. A ficção científica de Marker é também política – a linguagem é fragmentada, as palavras e as imagens colam e descolam, mas a mensagem é certeira. Aterrissar no presente para quem vem de tão longe, de 4001, pode abrir feridas:
No mundo de onde vem, clamar por uma memória, se emocionar ao ver um retrato, tremer ao ouvir uma música – só podem ser sinais de uma longa e dolorosa pré-história. Ele quer entender isso. Essas enfermidades do Tempo, ele as sente como uma injustiça, e a essa injustiça ele reage como Che, como os jovens dos anos sessenta, com indignação. Ele é um terceiro mundista do Tempo, a ideia de que o infortúnio existiu no passado de seu planeta é tão insuportável para ele quanto para eles a existência da miséria em seu presente.
“Sans Soleil” fala de festas populares e passageiros de trem: mostra animais, mas também luta política; viagens no espaço-tempo, mas também Hitchcock, pobreza, luta de guerrilha, sonhos. A tela, o nosso presente, é um depositário de múltiplos retornos de memórias.