Sanctorum
Fantasia silenciosa
Por Ciro Araujo
Existe um olhar muito peculiar em “Sanctorum”, uma visão interessante sobre a fantasia na América Latina e sobre forças maiores que esmagam conjuntos locais. É um fluxo que vem constante no cinema latino-americano, um objeto sobre o qual é curioso como cineastas gostam de filmar esse estilo de opressão. Ciro Guerra produziu recentemente em “Pássaros de Verão” e Kleber Mendonça Filho teceu o violento (e também fetichizado) “Bacurau” . Querendo ou não, esse processo de popularização permite obras com soluções mais complexas tecnicamente, que por consequência produzem uma linguagem cinematográfica bastante astuta. Eis que nasce o filme de Joshua Hill, um respirar calmo e uma análise muito mais interessada em recriar a função da morte e como é vista após a cultura externa moldar a visão que se têm da mexicana.
Em “Sanctorum”, o silêncio é o personagem principal. Para tecer um campo esotérico, vê-se a necessidade da apresentação em tela de uma paciência de observar. Em primeiro momento, cenas de cafés da manhã calmas, próximas a Ozu, em que se conversam sobre a rotina num mundo periférico esquecido pelo Estado. Logo, demonstram desenvolverem uma profundidade própria, uma dramaticidade longe do mestre japonês. É apenas uma naturalidade que o próprio diretor monta no filme; algo estranho e incomum, pois falar é trivial ao ser humano, mas quando dentro do universo maquinado, torna-se como uma espécie de poder. “Não podemos falar com ninguém”, pronuncia, longe do espanhol, o personagem de Damián Martinez. O diálogo ocorre num desabafo, no pouco momento onde ali se pode conversar. Se não há fala, há pelo menos a visão.
E é a partir disso que a contemplação é necessariamente o produto que transforma o longa-metragem. Não existe um imaginário fantástico sem visões longas da paisagem em geral, uma beleza dramática bem como a tranquilidade antes da tempestade. A natureza é dividida em cenas de violência, uma visão comum de quem vive em um mundo em guerra e em belezas frias, quase que intocáveis, como um gigantesco museu à ceu aberto. Não obstante, seus cenários enevoados remetem à cinematografia de Andrei Tarkovski, com o misticismo religioso que o russo também procurava tão interessado, especialmente em suas polaroides, ou de Patrício Guzman e a obsessão pela cultura originária e o paisagismo austero em “Nostalgia da Luz”.
Apesar desse enxame de comparações com o mundo cinematográfico, olhe bem, pois Joshua Hill produz uma obra de dimensionamento próprio. São imagens poderosas, que aproveitam de sua própria época e atualidade (efeitos especiais são comuns no filme, e adicionam por muito à própria fantasia) e se arriscam para produzir uma mitologia tão graciosa, mística e assustadora, numa parceria que é comparável ao próprio diretor estar filmando logo tão próximo aos próprios Deuses. Uma proximidade das divindades que se estendem para a natureza, cujo processo que, talvez, diante da aversão estatal que existe no mundo periférico da obra, apenas elas poderiam solucionar. O soar de sinos, quase bíblicos, no aviso mais macabro da proximidade com seres além-universo, é a cereja do bolo no produzir criativo do cosmos que aparece. Um tipo de fábula que muito absorveu o cinema de gênero e produziu um mutante de documentário. Poderia ser chamado de farofa, uma mistureba, se o resultado não fosse tão bem direcionado, tão bem sensibilizado.
E de qualquer forma, “Sanctorum” é também sobre resistir. A língua ou fala, que seja, tão pouco usada, existe para preservar os dialetos mixtecas. Um personagem, o professor – em espanhol, Maestro, um nome tão mais cabível nesta obra – explica para crianças pouco mais de dez anos a Revolução Mexicana e elementos de resistência. Uma forma tranquila, talvez não tanto sutil, mas eficiente de conversar sobre a própria cultura e antagonizar com uma guerra miliciana que se produz de maneira quase rotineira, especialmente na região situada. Aquela naturalidade citada, derrama aqui na atuação tão próxima da integridade que, pelo menos no que normalmente se vê em um filme fantasioso, parece tão antagônico. Joshua é eficaz e compreensível, pois bem, entende o campo onde se encontra, a saturação e como ser o máximo honesto. O resultado? Uma fantasia, por horas chamada pelo nome de realismo mágico, sobre a opressão tanto apresentada nessa regiãozinha caótica – e muitas vezes esquecida, como todos sabem – chamada de América Latina.