Rubens Gerchman: O Rei do Mau Gosto
Polifonia
Por Pedro Mesquita
Durante o É Tudo Verdade 2022
O tema da ausência aparece em mais de um filme desta edição do festival É Tudo Verdade. Em “Adeus, Capitão”, por exemplo, a ausência do capitão é compensada através dos amplos registros realizados pelo diretor, Vincent Carelli, ao longo dos seus anos de contato com ele. Em ”Rubens Gerchman: O Rei do Mau Gosto”, verifica-se uma vontade similar. A intenção de Pedro Rossi, que assina a direção, é a de rememorar a vida e obra do artista plástico brasileiro, falecido em 2008.
No entanto, ao contrário do filme de Carelli, inexiste a proximidade entre autor e objeto. Se “Adeus, Capitão” é construído sob a estética do “cinema-verdade”, na qual vemos o diretor interagindo com o seu personagem principal, em ”Rubens Gerchman: O Rei do Mau Gosto” a maneira como se faz a recordação da personagem que dá nome ao filme é através de material de arquivo. A presença de Rossi no filme não é evidente, como no filme de Carelli (embora, é claro, possamos senti-la através da montagem, visto que sabemos que não existe filme impessoal ou neutro).
Por meio de um material bruto extremamente diverso — muito do qual gravado em câmeras Super 8mm por Carlos Vergara e pelo próprio Rubens —, o filme propõe um passeio pela carreira do artista. Esse passeio, porém, não se dá na forma de um retrato “fechado”, ensimesmado da sua produção; visto que a sua obra é sobretudo um produto do seu tempo, realiza-se um panorama da vida social/política/cultural brasileira que informou a criação das suas peças. Em ”Rubens Gerchman: O Rei do Mau Gosto”, a linha do tempo pessoal e política andam em paralelo.
Qual seria, então, esse contexto no qual a obra de Rubens está inscrita? As vésperas, o início e o subsequente recrudescimento da Ditadura Militar. Através de imagens de filmes caseiros e transmissões de rádio, acompanhamos a promessa de reformas de base colocada por Jango e o lamento das expectativas não cumpridas; o golpe; as crescentes medidas de repressão, sobretudo à classe artística (visto que é esse o foco do filme)… conhecemos muito bem o repertório. Mas é aqui que reside uma das maiores forças de ”Rubens Gerchman: O Rei do Mau Gosto”: não se percorre o itinerário com aquela velha dinâmica expositiva que certamente prejudicaria o filme, tornando-o banal; apesar de ser um filme bastante rico do ponto de vista histórico, ele renuncia suas pretensões à objetividade, estruturando-se a partir de rememorações das personagens.
Um dos motivos mais recorrentes na estrutura do filme é, por exemplo, a leitura de cartas que foram um dia endereçadas a Gerchman. Elas suscitam memórias dos eventos narrados e das pessoas que a escreveram, abrindo pequenas ramificações narrativas que o filme segue até retomar o seu percurso. Seguimos uma condução predominantemente linear dos eventos, mas a estrutura é suficientemente livre para permitir pequenos desvios. Afinal de contas, “…O Rei do Mau Gosto” é um filme sobre a memória, e esta não funciona senão sob uma dinâmica errática, vacilante (as ranhuras e as sujeiras dos filmes nos passam bem essa sensação).
Enriqueçamos um pouco a descrição: o filme espelha o funcionamento da memória, sim, mas não de uma memória individual: da memória coletiva. Apesar da premissa, que nos sugere o retrato aprofundado de uma só pessoa, o filme atinge um tal nível de descentramento que o seu assunto real mais nos parece o retrato de toda uma geração de artistas que viveram sob circunstâncias similares. O discurso é polifônico — e o é em um grau elevado, dado o número de pessoas que contribuem para o projeto, seja por meio de entrevistas, cartas, registros audiovisuais, obras de arte dos mais variados meios etc. Por meio de uma hábil tessitura, as vozes se misturam de modo que nenhuma toma um protagonismo definitivo sobre as outras. A figura do narrador, abraçada pelos documentaristas de viés clássico e problematizada pelos modernos, é restituída aqui com uma pluralidade notável. De quem é o ponto de vista no filme? A essa pergunta não encontramos resposta simples.
”Rubens Gerchman: O Rei do Mau Gosto” realiza um trabalho louvável com a reunião de seu material de arquivo; podemos colocá-lo ao lado de alguns ótimos documentários brasileiros recentes de similar vocação, como “Imagens do Estado Novo” (Eduardo Escorel, 2018) ou “Histórias Que Nosso Cinema (Não) Contava” (Fernanda Pessoa, 2017). Mas, mais produtivo que elogiar a reunião do material (ou o conteúdo que nele reside) é exaltar a maneira como ele se embaralha na montagem. Eis o retrato não apenas de um Rubens Gerchman, mas do espírito do seu tempo.