Artigo
Rogério Sganzerla: Cinema e Modernidade
Por João Lanari Bo
Ao reunir suas reflexões em 2001, sintomaticamente intituladas de “Por um cinema sem limites” – em síntese, uma defesa da pertinência do “cinema moderno” – Rogério explicitou sua trajetória crítica como a essência de “ilustração e criação” cinematográfica a que veio se dedicar posteriormente. Na apresentação do livro o autor sublinha o foco na “oposição entre o cinema clássico dos anos 30 e o exemplo revolucionário dos anos 60”, e conclui:
“Acrescido à animação da minha juventude, quando o cinema se mostrava impressionantemente criativo aqui e em todo o mundo – suficientemente informado do que havia de melhor no cinema de Paris a Tóquio, parti para a ilustração e criação cinematográfica, quase como uma comprovação prática destas teorias que só poderiam produzir milagres na tela. Minha filmografia descontínua atesta-os.”
Rogério Sganzerla nasceu em Joaçaba, em Santa Catarina, só foi falar com seus familiares quando completou 5 anos e aos 7 publicou um livro de contos. Acabou indo estudar Direito e Administração na capital paulista, o primeiro abandonado depois de dois anos e o segundo concluído. O que espanta é a idade precoce com que começou a escrever para o suplemento literário de “O Estado de São Paulo”, o principal jornal da cidade mais populosa do país: somente 17 anos. Isso numa época, 1964, em que suplementos literários exerciam uma real influência na vida cultural das respectivas cidades e, no caso do “Estadão”, do país. Quem apresentou a oportunidade foi o prestigiado crítico e professor de teatro Décio de Almeida Prado, que editou o suplemento de 1956 a 68. Na redação do jornal Rogério conviveu com Francisco de Almeida Salles, o conhecido Presidente da Cinemateca Brasileira e igualmente crítico de cinema, personagem de projeção na cena paulistana, a quem se ligaria pelo resto da vida.
Sua produção crítica ao longo da vida permaneceu intensa. O diretor catarinense, nas palavras de Helena Ignez, é “autor de percepções proféticas e metafísicas”. Com o cinema moderno, o “filme” passa, segundo Sganzerla, ao império da relatividade:
Em primeiro lugar, o filme se localiza diante da realidade, muito vasta e profícua para ser abstraída e composta em doses, ou seja, obedecendo a uma estrutura cartesiana. A câmera individualiza-se e toma posição frente à intriga; já não se situa em todos os lugares, posições, e até em dois lugares ao mesmo tempo (montagem paralela) … ao invés de pretender um “ângulo absoluto”, impossível na vida real, busca o “melhor ângulo possível numa situação dada”. Assim, já não há a idealização da realidade, mas a integração com o real. A câmara procura captar os objetos tais como são – destituídos de qualquer aura romântica ou de seus “corações românticos”.
Jean-Luc Godard foi tema de diversos ensaios de contextualização do cinema moderno. Como diz o franco-suíço, citado por Rogério: Os seres e os objetos já não são situados psicologicamente, nem moralmente, e ainda menos sociologicamente. E Sganzerla prossegue:
“A “câmera” cínica é a “câmera” que deixou de participar do movimento dramático, distanciou-se dele; olha-o indiferentemente, olha-o apenas… Com esta distanciação, rompe-se a relação dramática câmera/personagem; obtém-se a visão desdramatizada e purificada dos seres e dos objetos; e com esta desdramatização reintroduzem-se eles em si mesmos.”
A atualização da sintaxe cinematográfica do cinema moderno acontece também na sintaxe gramatical do título dos filmes, como nota o texto:
“A reintegração dos seres e dos objetos na dimensão ocular pode ser exemplificada com o título de um filme de Godard, Uma mulher é uma mulher. Suprime-se, assim, qualquer noção adjetiva, como, por exemplo, “a mulher é fatal”, “a mulher é misteriosa” etc. etc., para ela ser ela mesma: Uma mulher é uma mulher.”
O Homem dos olhos de Raio-X
Escrever um texto sobre um filme como O Homem dos olhos de raio-X, que Roger Corman realizou em 1963, foi uma deriva crítica ousada e radical. O artigo foi publicado em 1966 na revista Cavalo Azul, editada por Dora Ferreira da Silva, voltada à poesia, sobretudo alemã (Rilke, Novalis), filosofia (Heidegger, fenomenologia), especulação mitológica e referências contínuas ao mundo grego. A perícia com que Rogério articulou noções eruditas sintonizadas com o público leitor da Cavalo Azul e o mergulho na cultura “pop”, da qual o filme de Corman é emblemático, revela o grau de habilidade artesanal a que chegara, e anuncia o realizador que explodiria dois anos mais tarde com Bandido da Luz Vermelha. O filme de Corman foi lido por Rogério como representação do limite da narrativa cinematográfica, pois:
“O tema do filme em questão: o olho, isto é, o cinema – e não será necessário lembrar a imagem inicial, a anatomia de uma retina dilacerada ou o próprio título da película. Nada mais moderno – e nada mais barroco – do que um filme cujo objeto é o cinema, de um filme que se pensa por isto mesmo, voltado para si ou contra si.”
A fita de Corman tem um enredo típico das ficções científicas temperadas de terror: um cientista, magistralmente interpretado por Ray Milland, quer superar os dez por cento da visão humana e alcançar a visão total, absoluta. Para chegar a esse estado utiliza dispositivos artificiais, fetiches tecnológicos que expressam a subjetividade delirante de alguém socialmente classificado como investigador do conhecimento. O desejo de extrapolar os limites da visão – em última análise, da narrativa cinematográfica, ou ainda, do cinema – termina levando o personagem à autodestruição, pois passou a ver “o absoluto, a exercer a totalidade da visão divina” – ou, como insistem os diálogos do filme, “é um deus”:
“O drama do personagem é pretender o absoluto: querer ver. Mas há os riscos do jogo; chega, pois, a perceber o assim chamado “fundo das coisas”, e acaba sofrendo porque vê demais. Para o cientista ambicioso não há o cotidiano, as aparências, os pequenos gestos: o mundo não passa de sombras irrecuperáveis, andaimes perdidos, esqueletos apressados, carcaças e chassis de automóveis.”
A ruptura da adequação fisiológica da visão humana – agora equipada com raio-X, portanto total, absoluta, 100 % – projeta o cientista em um abismo insondável e desesperador. Milland, um ser humano alçado a uma natureza divina, conhece pouco a pouco os poderes autodestrutivos que emanam desse novo estado, uma espécie de punição prometeica incontornável. Mas, pergunta-se Sganzerla:
“ver – absolutamente ver (e, ocasionalmente, ouvir) – não é o conceito fundamental do cinema clássico, da arte tradicional, daquela que anda em busca da perfeição, do eternizar-se e implantar-se pelos séculos?”
Na ânsia da visão absoluta, de abarcar “todo o real”, o cinema clássico esquece o imediatismo cômodo, as superfícies lineares, arrastando o olho do espectador para “perspectivas que se tornam enganosas, labirínticas, pois foge-lhes o real.” Homem dos olhos de raio-X, verdadeira metáfora dos limites da percepção, torna-se um marco da morte do cinema clássico:
“Com os poucos elementos de sua formação acadêmica, Roger Corman compreende o estado das coisas. E sua reflexão conduz ao inevitável: clamar pela destruição do cinema; e a imagem final é a do protagonista arrancando os olhos. É destruindo-se que ele soluciona seu drama (ver demais) … Corman não só destrói o cinema tradicional como destrói-se a si mesmo, ele, um dos últimos elementos eficazes do cinema clássico”
Far-west sobre o III Mundo: Bandido da Luz Vermelha
Em 1968, durante as filmagens de Bandido da Luz Vermelha, um dos dois ou três filmes mais influentes do cinema brasileiro, Rogério redigiu um manifesto, chamado de “Cinema fora-da-lei”. O filme foi rodado entre abril e maio de 1968, período em que, como se sabe, acirravam-se as já difíceis condições políticas no Brasil, que terminaram levando o regime militar a baixar, em 13 de dezembro daquele ano, o Ato Institucional número 5. Publicado inicialmente na (mesma) revista Cavalo Azul e reproduzido posteriormente à exaustão, o manifesto permanece como um dos documentos mais virulentos da cultura brasileira, salpicado de ressonâncias tropicalistas, de uma antropofagia visceral e, sobretudo, repleto de referências cinematográficas. O texto abre em alta velocidade, a exemplo do filme:
“Meu filme é um far-west sobre o III Mundo. Isto é, fusão e mixagem de vários gêneros. Fiz um filme-soma; um far-west mas também musical, documentário, policial, comédia (ou chanchada?) e ficção científica. Do documentário, a sinceridade (Rossellini); do policial, a violência (Fuller); da comédia, o ritmo anárquico (Sennett, Keaton); do western, a simplificação brutal dos conflitos (Mann).”
Qual a identidade do Bandido? um gênio ou uma besta? bandido ou mocinho? o falseamento constante da sua “personalidade”, segundo um código que privilegia a artificialidade e a assimetria do som e da imagem – pressupostos do cinema moderno – instaura no centro mesmo do filme um núcleo vazio, instável, liquido. O Bandido é afetuoso com as mulheres, generoso com os pobres, vingativo com a polícia, entediado com o cotidiano, nauseabundo, encucado. Todos esses atributos estão nas suas ações e falas, e são falsos. A substância imaginária que os personagens do cinema clássico aparentam é reduzida no Bandido a uma mistura indiscernível de comportamentos. Quando não pode fazer nada, o personagem avacalha, dizia Rogério.
“Estou filmando a vida do Bandido da Luz Vermelha como poderia estar contando os milagres de São João Batista, a juventude de Marx ou as aventuras de Chateaubriand. É um bom pretexto para refletir sobre o Brasil da década de 60. Nesse painel, a política e o crime identificam personagens do alto e do baixo mundo.”
E vieram uma sucessão de filmes marcantes, cada vez mais far-west do cinema brasileiro: Mulher de Todos, Copacabana Mon Amour, Abismu”… Sem essa, Aranha é talvez a obra-prima do cinema “udigrudi” brasileiro: são 17 planos-sequência com som direto, onde o biliardário-cafajeste Aranha – interpretado pelo hilariante personagem da TV, Zé Bonitinho (Jorge Loredo) – trafega pela “instabilidade do nosso cinema, que é também a da nossa sociedade, dos nossos amores, do nosso sono”, esbarrando na profundidade do campo com o Rei do Baião, Luiz Gonzaga, e no deck da piscina com o Rei do Samba-do-Breque, Moreira da Silva, sempre ladeados por Helena Ignez e Maria Gladys. Em 1986, Rogério realiza Nem tudo é verdade, com Arrigo Barnabé no papel de Welles, quando a maior parte do negativo original não havia ainda sido descoberto nos porões da Paramount.
Tudo é Brasil – Antropofagia na contramão
Tudo é Brasil, longa-metragem que Sganzerla finalizou em 1997 sobre a passagem de Orson Welles no Brasil, inscreve-se na cultura brasileira de modo peculiar. Acostumados a um desfile ininterrupto de carros alegóricos sob o tema ideias de Brasil, algumas fora do lugar, outras demasiadamente localizadas, é com satisfação que assistimos a um corte inteligente proporcionado por um olhar – ou melhor, um ouvido – alienígena. A epopeia cinematográfica de Orson Welles no Brasil, em 1942, no contexto da política da boa vizinhança dos EUA com seu quintal latino-americano, dá aqui um salto epistemológico em relação às leituras sociológicas a que estamos mais ou menos habituados sobre Brasil. Pelas lentes de Welles – fragmentos do filme nunca acabado, inclusive takes inéditos do fotógrafo de “Cidadão Kane”, Gregg Tolland – e pela voz de Orson – trechos de emissões de rádio do Brasil para ouvintes norte-americanos – Sganzerla reorganiza um material inestimável para a compreensão do nosso Brasil, ou ainda, da fantasia de Brasil que nos anima.
“O Brasil é o desejo do outro, ou melhor, é o gozo do outro”, supõe uma interpretação, digamos, psicanalítica, do Brasil. Essa totalidade excessiva que é o nosso país tropical, as descrições luxuriantes de nossa natureza, que permeiam nosso imaginário e que desembocam numa sentimentalidade derramada, seriam elas o “gozo do outro?” O Brasil (e os irmãos latino americanos) seriam depositários de um excesso de desejos do outro europeu, configurando uma cultura carregada de neuroses (religião) e obsessões (sexualidade)? O caso brasileiro mostra contornos particulares, pois o “gozo do outro” é, sobretudo, a “ilusão do gozo”. Uma tal erotização da cultura teria arrastado a nós, brasileiros e brasileiras, à paradoxal situação de reprodutores compulsivos do olhar estrangeiro que baliza nossas manifestações culturais, pois adotamos a visão do paraíso do descobridor europeu para nos olharmos a nós mesmos. Ou seja, nosso desejo é o desejo do outro.
Tudo é Brasil introduz um curto circuito nesse círculo vicioso. É claro que outros já o fizeram em momentos distintos – basta lembrar a antropofagia oswaldiana – mas a novidade do remix de imagens e sons de Sganzerla está em colocar no centro da narrativa nada mais nada menos do que o olhar e o timbre do colonizador – mesmo sendo ele um colonizador de fala mansa, como é Orson Welles, que permaneceu no Brasil cerca de seis meses, suficientes para forjar uma mitomania. Trata-se, enfim, de devorar o desejo do outro, o desejo de Welles, estratégia aliás que o próprio Orson aprovaria com louvor – uma antropofagia na contramão. Ao agenciar planos da fazenda de café em São Paulo, do carnaval de rua no Rio de Janeiro, dos jangadeiros no Ceará, com os comentários radiofônicos esfuziantes de Welles – a gargalhada orsoniana no tabuleiro da baiana, contraponto com a voz e o balanço de Carmen Miranda, ela mesma exemplo de corpo erotizado pelo olhar do outro – Tudo é Brasil sintetiza o fluxo de cultura que vem do Sul do Equador e registra no ato a devoração do cineasta norte-americano. Tudo é Brasil – pulsão de universalidade, cultura que absorve os desejos do outro, que tanto seduz e tanto sofre – esse o desejo de Welles, captado em sua oralidade pela montagem caótica, sonora, repetitiva e antropofágica de Sganzerla.
O filme, enfim, faz um corte vertical (sincrônico) no discurso cinematográfico de Welles (ou quase-discurso) para registrar como aquele discurso organizava seu projeto de assimilação de signos culturais brasileiros. Enquanto a linguagem documental “informativa” volta-se para o registro histórico com a preocupação da permanência desse registro no plano histórico, isto é, com as consequências que aquele fato acarretou ou poderia ter acarretado, Tudo é Brasil satisfaz-se em deglutir fragmentos do período, alinhados no mesmo corte. E a manipulação do rádio funciona como uma espécie de arqueologia desejante do saber, superposição de camadas de sonoridades que incessantemente remete o (tele)espectador a múltiplos fragmentos e registros, evitando as falsas totalizações. Fragmento do fragmento, – ou ainda, a compreensão da verdade como um inferno fragmentário – essa a pulsão da linguagem que animou a convergência de Orson Welles e Rogério Sganzerla.