Roberto Farias – Memórias de um Cineasta
Autor e obra, memórias e história
Por Paula Hong
Festival do Rio 2023
Uma das maiores forças da imagem — seja ela estática ou em movimento — é a sua habilidade de reter, a longo prazo, um momento. Momento este que, mais tarde resgatado dentre tantos outros de mesma natureza, torna-se memória. A potencialidade dessa memória é capaz de traçar caminhos que a construíram e, pouco a pouco, destrinchar e remontar uma narrativa. Sabendo disso, Marise Farias, tão intimamente filiada à vida que retrata, constrói uma bela homenagem a seu pai, o cineasta Roberto Farias.
É engraçado notar que desde o começo de “Roberto Farias – Memórias de um Cineasta” Farias (o pai) deixa claro que a realização de uma obra que privilegia suas memórias como cineasta, tendo em vista a rica vivência dentro do cinema brasileiro, não lhe interessa tanto quanto voltar para si mesmo, dos bons momentos que coleciona ao lado de quem ama e admira.
O cineasta mostra-se sempre muito interessado em retornar às origens, da tomada de consciência da sua identidade e da progressão de decisões que influenciaram na modelagem de quem se tornou. A diretora se inspira nisso, entendendo que traçar uma linha cronológica (fluida e muito bem feita, diga-se de passagem) do pai, ajuda a entender parte da formação de sua identidade, também. Entender as camadas — o homem, o cineasta, o politicamente engajado etc — que formaram Roberto permite Marise assimilar as próprias memórias daqueles primeiros anos de formação da imagem dele, para além de seu pai. E, mais tarde, ciente da importância dele, recorre à sua paixão por cinema para inseri-lo na área como alguém que fica em frente à câmera, apesar de quase toda uma carreira feita atrás dela.
Para tanto, “Roberto Farias – Memórias de um Cineasta” utiliza de imagens de arquivo estáticas e em movimento, de depoimentos do cineasta (às vezes em vídeo, às vezes em voz off), de familiares, como de Marise, de colegas do cinema, trechos de seus filmes, e propostas singelas e bonitas de complementação visual das falas de Roberto numa espécie de reconstrução de sua infância e momentos anteriores à sua carreira no cinema.
É quando aprendemos que a construção de sua identidade, por intermédio da reflexão sobre essas memórias, e a natural inclinação para a área são indissociáveis — seus princípios, sua visão de mundo, sua flexibilidade para com as mudanças no decorrer das décadas são transpostas para as obras. Roberto Farias alimentou sua curiosidade e fascínio pelo cinema desde criança, a ponto de incentivar o irmão a acompanhá-lo. Sua formação na área se deu pela prática, como muitos jovens contemporâneos à sua época. Alguns riscos financeiros pela informalidade dos anos verdes somaram à experiência. Assim, o documentário estabelece um panorama que concomitantemente alterna entre a visão de Roberto e os ensinamentos que a prática vitalícia lhe trouxe.
Auto-intitulado sem rótulos, o cineasta prezou pela liberdade de navegar por diversos tipos de filmes, desde os mais inclinados a inquietações de cunho político-social, muito pungente durante as primeiras erupções do Cinema Novo (“O assalto ao trem pagador”, “Pra frente, Brasil”) até os mais comerciais (“Roberto Carlos em ritmo de aventura”, “Os trapalhões no Auto da Compadecida”). Foi essa flexibilidade que, mesmo com dificuldades, permitiu que continuasse a viver de cinema — sobretudo durante a Ditadura Civil-Militar. Não foi imune às críticas de Glauber Rocha, como muitos não foram, por não continuar a realizar filmes que se mantiveram na esteira de produção vinculada ao Cinema Novo, embora fosse tímido contribuidor e entusiasta do movimento. Mais tarde, após o fim da ditadura, foi para a Globo, produzindo a minissérie “Memorial de Maria Moura”, e demais projetos. Temos uma exposição bastante generosa às principais obras de Farias.
Apesar de não inovar em forma e linguagem, “Roberto Farias – Memórias de um Cineasta” faz um belo trabalho biográfico de um cineasta cuja vida tem relação intrínseca com o cinema, sendo possível traçar uma linha temporal simultâneamente ampla e concentrada nas suas memórias, localizando-as em momentos chaves do cinema brasileiro. Sua vida é cinema com realizações de “filmes possíveis” — uma fala tão atual em nosso cinema. Sua carreira coleciona prestígio nacional e internacional. As criações de Farias acompanham décadas de desenvolvimento de um cinema que ainda procura estabelecer diálogo com o futuro, com a sua sobrevivência, através de novas roupagens. O filme permite, através da íntima lente de Farias (pai e filha), conhecer e aproximar autor e obra, e não autor ou obra; sem um, não é possível — e não fazem questão de adotar tal abordagem — conhecer o outro. Suas memórias são uma verdadeira aula de cinema brasileiro.