Revanche
Minha é a vingança
Por João Lanari Bo
Festival de Berlim 2008
“Revanche”, longa que o austríaco Gotz Spielmann realizou em 2008, é um filme seco e austero – planos longos e estáticos pontuam a narrativa, um thriller sem os sobressaltos habituais do gênero, mas mesmo assim intenso e envolvente. Um ex-presidiário sem grandes talentos, embora dotado de natureza criminosa, enamora-se de uma prostituta ucraniana no bordel em que trabalha. O affair é secreto, ela é endividada, a saída é assaltar um banco na zona rural e fugir: ela morre na fuga, atingida por um policial que mirou os pneus do carro. O que importa não são os artifícios de roteiro que eletrizam a história – o que importa é observar as motivações dos personagens, as forças que os movem e apontam seus destinos.
Um pouco de filosofia pode ajudar na leitura da trama, em particular a obra de Arthur Schopenhauer, alemão que viveu na transição do século 18 para o 19 – e influenciou um número espantoso de pensadores e artistas, apesar de ter sido, ele mesmo, um filósofo à margem do mainstream acadêmico do seu tempo. Em sua obra “O mundo como vontade e como representação”, Schopenhauer situa a essência do homem não na consciência e na razão, mas na Vontade, considerada por ele como um impulso cego, irracional, indomável, sem fundamento, que move o mundo. Na paisagem de “Revanche”, os seres humanos parecem vetores da vontade schopenhaueriana.
Concorre para essa percepção a mise-en-scène desdramatizada imprimida pelo diretor, no limiar do que seria uma representação amadorística. Os atores, profissionais, comportam-se quase o tempo todo de forma minimalista, sem psicologismos e exageros teatrais. Dentre as Vontades que povoam a história o destaque, como indica o título do filme, é a vingança – vontade que se instala em Alex (Johannes Krisch, excelente) e impulsiona os desdobramentos dramáticos. Alex torna-se um braço da justiça eterna, decidido a vingar a morte da namorada: motivada simplesmente pelo passado, ou seja, pelo que já aconteceu, a vingança é uma resposta à injustiça sofrida, e não pode ter outro objetivo, pela visão do sofrimento causado a um outro, do que consolar a si mesmo do próprio sofrimento.
Em “Revanche” a depuração da vingança reverbera em princípios bíblicos – afinal, o que é a Bíblia senão um mosaico de vontades, inclusive aquela que comanda no topo da hierarquia, a divina? Se o impulso de Alex parece determinado – ele está disposto a sacrificar-se pelo desejo de vingança, pelo desejo de tornar-se braço da justiça eterna – pode ser que também Deus esteja motivado. Diz a Bíblia: dai lugar à ira de Deus, porque está escrito; minha é a vingança, eu retribuirei, diz o Senhor. No limite, impõe-se a ética da convivência social, das leis que organizam o mundo. Transferir e sublimar a vingança para o plano divino é, em última análise, submeter-se ao desígnio dos homens e aceitar o outro, no mais puro sentido cristão.
Mas, não se trata de um sermão – estamos em um thriller, com cenas fortes de sexo, dividido espacialmente em duas seções, cidade e campo. Na segunda parte, Alex refugia-se na casa do avô, pequeno proprietário rural, vizinho do casal Robert e Suzanne (Ursula Strauss, igualmente excelente), que vivem o sonho da classe média, ele policial honesto, ela comerciante católica praticante. Gotz Spielmann – que também escreveu o roteiro – joga com contrastes e comparações entre esses dois universos, procurando paralelos físicos e morais, pequenas ironias e bifurcações. Tudo isso para realçar as noções de vingança e culpa que atravessam o filme.
As coincidências que tecem o enredo são explícitas, os personagens são colocados ao alcance da voz de um diálogo que os afetam. Na simplicidade (e quase obviedade) desse método é que o filme alcança sua efetividade. Não é um ajuste fácil, requer sutileza – a possibilidade de violência, a exasperação de Alex, de ameaças ao casamento de Susanne, a fragilidade do velho, a culpa do policial – “Revanche” não manipula essas situações, apenas expõe um conjunto de vontades que se cruzam e, para o bem e para o mal, se resolvem.
Pouco a pouco, o drama elaborado por Götz Spielmann ganha consistência, de forma persuasiva e natural, como uma tragédia potente, observada com simpatia. Os cenários são escuros, a luz é esmaecida – sejam paisagens isoladas ou quartos de prostitutas do bordel. São raros os momentos solares. No fim, os personagens afiguram-se visíveis em suas essências, ou seja, suas vontades.