Retratos do Futuro
O incolor filme camaleônico
Por Bernardo Castro
Durante o Festival É Tudo Verdade 2022
É muito cedo para dizer com precisão os impactos da pandemia da COVID-19 na história, mas com certeza já consegue-se perceber o quanto isso afetou a perspectiva de muitas pessoas. No ramo das artes, não foi diferente. Ainda na seleção de longasmetragens internacionais do Festival É Tudo Verdade, “Retratos do Futuro”, de Virna Molina, se destaca por sua excentricidade. Trata-se de um documentário ensaístico experimental, se for possível pô-lo em um nicho. A dificuldade para enquadrá-lo em um gênero específico se dá pela fruição livre, que perpassa diferentes gêneros e assuntos. Nos esforços para descrevê-lo em poucas palavras, é possível dizer que se trata de uma eterna divagação fílmica, onde não se pode precisar o início e o fim do seu raciocínio. Ele não tem a pretensão de suscitar nenhum tipo de conclusão no encerramento, posto que é essa digressão em vídeo engendrada pela autora.
Uma das principais virtudes do longa é o seu caráter camaleônico. Com o intuito de fazer, ao que tudo indica, um pseudodocumentário distópico, a cineasta argentina foi forçada a abandonar a ideia e se reinventar em virtude do isolamento provocado pela pandemia. “Retratos do Futuro” também conta com excertos de imagens de arquivo pessoal concernentes à votação sindical do metrô de Buenos Aires – os planos de utilizar estas imagens para registrar o evento foram frustrados por um suicídio, que ocorreu em meio às gravações. A partir da frustração de ter os seus planos adiados, ela reelabora o seu discurso e usufrui do material que tem para conceber este longa. Tendo em vista que não se pretendia retratar do vírus, que obviamente não foi previsto, Virna não só insere a temática no filme, como também o correlaciona ao cenário apocalíptico da parte ficcional.
Destrinchando-o para a melhor compreensão do leitor, pode-se dividir o material por partes e, assim, tentar explicá-lo. A primeira parte é marcada pela forte influência do filme “La Jetée”, de Chris Marker. A maneira como ela usa imagens fixas e dá movimento através de sons remete muito ao francês. Chama também a atenção o jeito com que ela simula elementos da fotografia em uma imagem projetada na tela do computador, como no zoom rápido precedido pelos cliques de mouse audíveis. Com a limitação advinda da clausura, a realizadora opta por um leque extenso de técnicas de edição e mergulha em diferentes ferramentas tecnológicas para construir a peça, podendo-se citar as cenas de “Metrópolis”, de Fritz Lang e uma sequência espetacular, onde o vídeo de um lugar onde está nevando é invertido – daí que vem grande parte do experimentalismo. Também experimental narrativamente, ele é metalinguístico no tocante a não ter a pretensão de omitir o fato de que é um filme e são constantemente elucidados os processos de montagem e desenvolvimento da trama.
Após estes primeiros minutos, a narrativa de “Retratos do Futuro” entra em diversos outros méritos, como o desemprego, história de opressão na Argentina, feminismo, emancipação da mulher, comunismo e socialismo, privatização, dentre muitos outros. Traspassando todos eles, a diretora faz questão de pôr um toque de subjetividade intercalado com o tema e conta a história de sua vida, falando sobre suas filhas, seu marido e sua infância durante o regime ditatorial. Intentando manter a unidade do produto audiovisual, são inseridas caixas de texto ao longo dos 90 e poucos minutos, que servem como paralelismos visuais, uma vez que quase sempre repetem a pergunta ‘Verdadeiro ou falso?’.
O grande calcanhar de Aquiles desta película é a maneira que é conduzida. Somado à falta de sentido, o experimentalismo bruto de seus planos e seus inúmeros assuntos, o ritmo arrastado e a cadência morosa forçam o espectador a perder o foco e abstrair frequentemente do que está sendo passado. A grandiloquência com a qual Virna tenta concatenar todas as ideias, pensamentos e solilóquios dos mais variados temas distrai a realizadora da mensagem original e torna a obra uma miscelânea de debates e ideias.
Não tem como negar a influência dos tempos pandêmicos na inflexão da narradora. A narração, que é enfática na mensagem, exprime através de sua tonalidade mórbida um sentimento niilista, exprimindo com clareza a percepção da cineasta sobre os tempos pandêmicos e a desesperança que ele trouxe consigo. Ao contrário do que se espera, ela termina “Retratos do Futuro” de forma esperançosa, convidando o espectador a imaginar um “lugar seguro” longe de todas as incontáveis mazelas do mundo moderno.