Retrato de um Certo Oriente
A suspensão do tempo estrangeiro
Por Fabricio Duque
Durante o Festival de Cinema de Roterdã 2024
Um dos maiores desafios a todo e qualquer realizador de filmes é encontrar o timing preciso ao transformar vidas projetadas da realidade em narrativa ficcional. Sim, o brasileiro e cearense Marcelo Gomes (de “Cinema, Aspirinas e Urubus”, “Viajo porque preciso, volto porque te amo”, “Paloma”, “Estou me Guardando para quando o Carnaval Chegar”) sempre gostou de se aventurar nesse caminho, especialmente por sua predileção de incorporar hábitos, costumes e comportamentos mais populares em suas obras. Ao observarmos seu cinema, de material orgânico em estética não lapidada totalmente, podemos entender que se coleta cotidianos, mas não tão realistas, por serem editados e redesenhados pelas lentes de uma câmera. Seu mais recente longa-metragem, “Retrato de um Certo Oriente”, integrante da mostra Big Screen do Festival de Cinema de Roterdã 2024, é sobre isso: acompanhar intimidades de pessoas em mudanças geográficas, gerando assim percepções suspensas, por conta das constantes e consequentes adaptações. Nós espectadores nos tornamos passageiros dessa viagem. Ouvimos que esses imigrantes trocam lugares, nacionalidades e suas casas para buscar um melhor futuro a seus filhos e um melhor estilo de vida.
Baseado no livro homônimo do escritor amazonense de Manaus Milton Hatoum, “Retrato de um Certo Oriente” é também um processo narrativo. Ainda que possa soar inicialmente facilitado pelos arquétipos e pelas caracterizações de suas personagens traduzidas, o filme aprofunda questões existenciais, afetivas, políticas, religiosas e sociais pela simplicidade das decisões universais. Assim como nos livros do Milton, aqui, o passado, a memória e a História são apresentadas por dentro, por intimidades. “O passado era como um perseguidor invisível, uma mão transparente acenando para mim”, trecho citado nos créditos de abertura. Há um tom de realidade fabular do possível, com um que, muito sugestivo, de uma estrutura do cinema português, em especial, “Tabu”, de Miguel Gomes. Talvez porque “Retrato de um Certo Oriente” se fotografe em preto-e-branco, em imagens mais experimentais. Podemos ir inclusive além e até inferir Lav Diaz. Nós somos atravessados por uma mise-en-scène estética, que lembra a de um teatro filmado e suas esperas situacionais. Sim, a essência de todo e qualquer ser humano é ser nômade. É se aventurar em jornadas de transformação.
“Retrato de um Certo Oriente” traz também a metáfora do estrangeiro. Do primeiro olhar ao mundo exótico que se aproxima. De suas línguas misturadas. Árabe, francês, português brasileiro. Cada um ali representa apenas uma ideia do que um imigrante deve ser e deve agir. E a câmera de Marcelo quer esse sensorial, essa estranheza de distância que potencializa o desarranjo. É como se neste momento, o filme quisesse a desconexão ao se comportar como uma novela de uma epopeia. Só quem já viajou, sentiu a sensação de se suspender do tempo presente. Uma paralisia de não pertencimento. Assim, o roteiro de “Retrato de um Certo Oriente” opta pela superficialidade quase mais caseira, uma maior cautela para traduzir esses transeuntes, um maior respeito por entender que é comum sentir desconforto ao lidar com o que ainda não entendem. Às vezes até pesa a mão ao facilitar demais as reviravoltas de suas personagens, como a descoberta do namoro no navio. Como foi dito, é um filme de processo. De uma personagem que começa a se soltar. Que naturalmente encontra o seu lugar. E de outra personagem que não se enquadra, defendendo-se pela fragilidade, mesquinhez e ideologias enraizadas. Ou outras que já trazem a liberdade de ser o que são em seus olhares e jeitos. Uns estão abertos a ensinar e a aprender. Outros não sabem lidar com as tempestades e pesadelos (tampouco hipocrisias) do caminho e se imbuem de tristezas e melancolias. Para um, revelar uma foto (em vermelho) é magia. Para o outro, ciência. Mas a ideia do amor, da amizade e da conexão imediata com outras pessoas é universal. Não precisa de línguas.
E assim, entre tretas familiares, conflitos e impulsos radicais e infantis, eles, que conservam uma ingenuidade esperançosa, chegam ao Brasil, em Manaus especificamente. E nós ouvimos nossas brasilidades, como a acerola, a rede no barco. “Retrato de um Certo Oriente” é sobre pessoas. Sobre vidas compartilhadas em um mesmo propósito. Todos eles estão juntos ao mesmo destino. Mas alguns modificam a rota por urgências e se embrenham na floresta amazônica em busca de salvação e para ouvir dos indígenas a luta de seus povos. Agora, o filme dá voz a esses indivíduos originários e de forma exótica assiste a suas danças. Sim, o filme poderia cair na caricatura “para gringo ver” se não fosse o fato de que a perspectiva-olhar é do estrangeiro em exílios permanentes. E dessa forma, “Retrato de um Certo Oriente” é uma crônica intimista de imigrantes libaneses em escalas, em quereres simples da paz utópica e da felicidade eterna.