Retablo
Pertinência Persistente
Por Jorge Cruz
“Retablo“, em parte da sua estética, parece uma obra de Wes Anderson, ao estilo de “Viajem para Darjeeling” (2007) e “Moonrise Kingdom” (2012). O diretor Alvaro Delgado Aparicio se vale, em boa parte das cenas, do mesmo enquadramento centralizado, atraindo tons pasteis de verde e azul. Quase como se um adicional do estilo peruano se fizesse presente, o rosa vem se alinhar a esta paleta. Não à toa foi escolhido como representante do país na tentativa de indicação ao Oscar de melhor filme estrangeiro. Essa projeção permitiu que a produção fosse exibida na 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. A construção formatada ao circuito alternativo e a tonalidade artística geraram uma ótima recepção no festival.
A princípio falado todo em espanhol, foi aceita a sugestão de Magaly Solier, intérprete de Anatolia, de se inserir diálogos falado no idioma quíchua. Isso tornou mais representativa a história, que se passa nos Andes. A única vez em que o Peru esteve na cerimônia da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas foi em 2010, quando a mesma Solier estrelou “A Teta Assustada“, perdendo o Oscar na categoria para o clássico absoluto “O Segredo dos Seus Olhos“. A campanha de “Retablo” vai bem, com uma boa passagem pelo Festival de Berlim de 2018, conseguindo prêmios especiais para jovens diretores. Talvez não o suficiente para figurar na lista final, porém, sem dúvida, um excepcional trabalho de estreia de Alvaro Delgado Aparicio.
A curiosidade é que o retábulo ao qual se refere o título é uma estrutura de madeira que geralmente é colocado nos altares das igrejas. De início, o roteiro de Apracio (ao lado de Héctor Galvez) nos apresenta Noé (Amiel Cayo) e Segundo (Junior Bejar), pai e filho que interagem quase sempre no ateliê onde o mais velho fabrica bonecos realistas por encomenda, contando com a ajuda do adolescente. “Retablo“, em seus primeiros momentos, é carregado de inspiração. Para demonstrar o quanto Noé se entrega do trabalho artístico, se vale desse pragmatismo andersoniano para fazer do vazio um personagem. Em determinada cena em que Segundo e sua mãe jantam, ela está perfeitamente alocada ao centro, enquanto o garoto ocupa o canto esquerdo. Do lado direito, uma cadeira vazia e sob a mesa um prato intocado de comida.
A ambientação do filme nos Andes, famosa região do Peru, faz a fotografia do longa-metragem naturalmente estonteante. Dito isso, todas as inserções de elementos narrativos na obra seguem o velho padrão do cinema latino-americano. Uma cena dentro da igreja para configurar o temor do pecado e do inferno a partir de um catolicismo enraizado, por exemplo. Chama a atenção o indicativo da doença da sociedade ao mostrar um homem amarrado ao poste e sendo chicoteado após ser pego tentando invadir uma propriedade para roubar. Não seria difícil imaginar que, em um grupo que se incentiva a crueldade no trato com o outro, a notícia da aflorada sexualidade fora do padrão normativo levasse à ruína qualquer pessoa, por mais respeitada que fosse.
O filme se baseia em diálogos de fácil acesso ao espectador, a não ser para aqueles que comungam a tese do punitivismo social extremado. Os mesmos que fomentam falsas simetrias e acabam por acimentar uma sociedade cada vez mais intolerante e com um grande poder de autodestruição. Para esses desmiolados, é até compreensível que o filme seja visto com outro olhar, aquele que entende que as minorias devem se curvar à maioria ou sumir. Em determinados momentos do segundo ato o filme acaba não avançado, eis que refém de seu roteiro que exige um desfolhamento cadenciado, mesmo que os mais atentos já tracem o percurso de forma natural. Essa persistência no desfolhamento acaba gerando uma conclusão que evoca uma punição que, se não divina, permite aos mais fervorosos dizer que foi por intermédio Dele que tudo aquilo aconteceu.
As alegorias bíblicas seguem sendo a melhor forma de aproximar do espectador de quase todos os lugares metáforas de fácil assimilação. Isso universaliza com mais facilidade qualquer produção. Por fim, acaba sendo uma história retratada com certa frequência no cinema, apenas em um novo contexto cultural. Não por culpa da falta de criatividade dos realizadores e sim porque trata de assuntos que, lamentavelmente, seguem sendo atuais e generalistas. Em “Retablo” é envolvente presenciar o sofrimento de quem se descobre fora do padrão em um mundo onde a semi-teocracia preenche de culpa o vazio das dúvidas. Um lugar hostil onde a reputação significa tudo e mesmo assim é posta em xeque pelos motivos mais inacreditáveis.