Resenha Livro: Ofos (conto O Barco)

Porque navegar é preciso

Por Chris Raphael


Trata o conto O Barco da construção de um barco espetacular em uma praia. Enquanto a cidade vivencia o evento de forma animada e com genuína satisfação em participar, um pescador local, notório porém simples, com sua esposa e filhos, vão se tornando lendas do lugar, enquanto escapam incólumes à participação nesta construção, desconfiando e desacreditando de tal acontecimento.

Este conto, escrito por Carlos Emílio Corrêa Lima, faz parte do livro de relatos Ofos (Nação Cariri Editora, Secretaria da Cultura do Estado do Ceará, 1984), e foi transformado e adaptado para cinema, em um filme longa-metragem de ficção, pelo diretor Petrus Cariry, em 2018.

Como uma mitologia, meio verdade, meio lenda, as estórias que atravessam o tempo e se incorporam ao clima do coletivo social tão familiar em pequenas cidades praianas. As verdades contidas no conto soçobram como uma relíquia de naufrágio. O conteúdo existencialista é exposto de modo irregular e não palpável. A fluidez permeando as palavras sugere um sopro salgado de vento marinho, texturizado pela areia.

Observando a estória da família e do próprio homem do mar, somos sugestionados a aceitar que ele próprio vai metamorfoseando-se em um barco de vidro, invisível ao estar no mar. O leitor vai embarcando na informalidade e de forma meio amadora, vai vislumbrando um mundo de possibilidades e seus isolamentos, enquanto submerge no fascínio de nomes, palavras e letras sopradas na casualidades da vida mais que comum.

As criaturas etéreas que vagueiam na forma de pais e filhos entre a população provocam a imaginação e aguçando os sentidos É uma sentença declaratória de liberdade, conduzida na ingenuidade predominante dos tortuosos caminhos de mar e sal, de ventos sonoros e aspectos da natureza.


O conto O Barco (na íntegra)
de Carlos Emílio Corrêa Lima


(Do livro de relatos Ofos ( Nação Cariri Editora, Secretaria da Cultura do Estado do Ceará, 265 pags, desenhos de Tarcísio Garcia, capa e contracapa, aerógrafos de Ricardo Nobre, Fortaleza, 1984),transformado e adaptado para cinema,num filme longa-metragem de ficção, pelo diretor Petrus Cariry)


O barco surgiu de uma expectativa. Sua arquitetura lembrava caligrafia feita com cuidado. E como todos os barcos era simétrico e todos estavam certos de que deslizaria. O barco na praia, sendo construído sistematicamente, tocado pela areia e moldado pelo vento era um objeto novo, sem marujos, desabitado, mas por sua inclinação, semi-enterrado na areia, a silhueta em foco contra o crepúsculo… era secular. Tornara-se o centro, o ponto das conversas, o alvo das risadas, a louça perfeita no café da manhã, e todos o visitavam, a conversar com os construtores numa interminável conversa de praias. Pedro Buarque era pescador notório mas ia ao alto mar por melancolia e nunca se interessou por aquele novo evento, aquela coisa mágica. Tudo aquilo lhe cheirava a estilo, a perfeição. Um barco que navegaria, que seria a eternidade. Cuspia no chão e mudava de assunto. Depois era gente formada em técnicas de flutuação, em artes de navegar, gente de fábula, gente que folheava livros retangulares cujas páginas esvoaçavam brincando com o ar azul. Gente de quem se desconfiar e a quem lançar o descrédito. Pedro Buarque gostava de sal, de auroras no mar. Sua mulher, Esmerina, teve o caráter e a vida toda prefixados em seu próprio nome. Diz-se que aprendeu isso com um avô ou um fantasma (o que hoje já nao faz diferença). Primeiro, quando aprendia a soletrar, pronunciou a palavra que se fixou daí por diante em seu coração ou na parte mais central de seu corpo ou consciência. O único nome que lia e compreendia era aquele, porque de fato nunca aprendera a ler e por isso sua vida não se bifurcou em novas palavras. Talvez por isso sua linguagem fosse uma tradução límpida das coisas imersas no ar ou contidas nos leitos dos rios. Sua vida tinha uma arquitetura fonética própria, palavra do parto à morte, e seu destino era conter-se e redesenhar-se por todo o tempo,pela natureza, através dos símbolos e da fertilidade. Foi uma mulher gerada do nome, parida pela palavra, personagem único na história do mundo e que depois tornou-se amante de Pedro Buarque. E eles dois tiveram filhos, mais de vinte filhos desorganizados. Alguns eram a cópia da mãe, outros a transcendiam e eram a cópia de Pedro Buarque. Foram gerados geometricamente durante cerca de vinte anos ou mais, como uma escadaria. Vieram da cólica, do espaçar de gozo, e foram entregues à amplidão. No filho inicial, uma menina que usava tranças e os olhos para escutar, a brisa oceânica fez um ruído ao perpassá-la que era a forma do corpo dela e que soava como o espaço entre uma pedra e uma árvore, espaço que ela em sua mais antiga recordação cruzou como se transpõe uma linha, fato que criou continuidade obrigatória e que, indiretamente, motivou um amor circular e feroz entre Pedro e Esmerina que a acompanharam com o olhar através da baía durante quase toda a existência deles. O segundo filho também foi tocado como uma corda pelo vento, som da consistência do gado somado aos campos. E esse filho juntou-se à irmã e os dois tornaram-se a primeira sílaba de filhotes. Houve um que morreu porque pertencia ao futuro e às profundezas do mar. Esse não teve conotação sonora. No terceiro ano nasceu uma nova criança que falou antes de contemplar as ondas e que depois de ser tocada pela brisa de tao espantada deixou de ouvir. A quarta, quinta e sexta criança, brincando, vindo do crepúsculo ou da aurora, pela praia, não significavam nada quando estavam juntas. E os anos se passaram, lentos e de dentro deles brotaram os filhos. O último já nao sabia da irmã inicial.O mais ou menos do meio esquecera os extremos. Só o exatamento do meio usava o passado e o futuro como asas. E quem falasse dos filhos de Pedro Buarque e Esmerina os mencionava sempre em conjunto como se estivessem tratando de algo fundamental e primitivo. Por toda a vida Pedro Buarque e Esmerina perderam três filhos e outros que não estão na conta e que ficaram na memória. Talvez a ordem cronológica não fosse a genética e só pudéssemos compreender todos os filhos do casal em associações mais complicadas. Esse com a árvore. Aquele dirigindo o barco. O outro que ao ler iluminadas praias, ao ouvir milhares de vozes, jamais percebendo a existência no mundo dos homens, da palavra t. Uma das crianças desenhando uma caletral e num momento solene, submerso, a caletral já construída, gritando determinado som para povoá-la, Os outros ajudando o pai nas grandes viagens, a quilha do barco tosco melodicamente atravessando a água. E cada filho era uma letra do alfabeto. Não é fácil seguí-los no espaço, no tempo e no amor. Estão em histórias do mar, de dilúvios e grandes secas. Seus passos diluem-se e ressurgem no ar etéreo, na água, no pó, na humanidade. Os pesadelos de Esmerina povoaram-se do prenúncio do incesto entre seus filhos letras. Mas isso não ocorreu. Não havia seres mais saudáveis no mundo. A associação para se darem palavras não ocorreria somente através do sexo.Simples troca de olhar, avanço de cores, reunião, acarretaria um novo vocábulo, que seria pronunciado inconscientemente num apertar de mãos ou num momento de ódio. E havia milhões de outras mulheres e homens, na Terra, que eram outras línguas, proliferando infinitamente. Nada havia a temer, A possibilidade de novas combinações era incontrolável. Talvez fosse por isso que não desejasse a construção daquele barco perto de sua palhoça. Detestava esse tipo de construções silenciosas, monumentais, silhueta de montanhas. Era um homem simples, apesar dos filhos e da mulher, palavra feita carne num dia de muita chuva, num dia de criação. Um barco de vidro, à beira da praia, talhado como diamante. Nascido da própria praia. Areia cozida pelo sol. Inventado das ondas, quem sabe não se transformará em água. Mineral e secular, tentar-se-á torná-lo possível e resplandecente. A tentativa é batizá-lo concha. O vidro polido, cerâmico, vindo dos sonhos. O barco tornar-se-á invisível porque já está no mar. A maioria dos habitantes da aldeia ainda vêem suas linhas negras, só as linhas externas, de contorno, recortando, que são as formas, pauta sensível. Barco cerebral, a brisa, esse cântico azul, o marulho, o apagam. Talvez seja o horizonte. Esmerina e mesmo Pedro Buarque estão na boca do povo talvez por necessidades mitológicas, do próprio tempo. São pronunciados como argila. É sinal de que continuam na Terra.

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