Redacted – Guerra Sem Cortes
Editado para remover informações confidenciais
Por João Lanari Bo
Mubi
“Redacted”: longa-metragem de Brian De Palma rodado em 2007, foi realizado quando a Guerra do Iraque começava a baixar a temperatura (no Brasil, levou o título de “Guerra sem cortes”; em Portugal, “Censurado”). Depois da invasão em março de 2003, sob o argumento (falacioso) de que Saddam Hussein preparava uma “arma de destruição em massa”, perdurou uma ocupação que desestabilizou o país e levou à morte de até 650 mil pessoas, a grande maioria civis – outras estimativas, sobretudo as oriundas dos militares americanos, falam em 50 ou 60 mil. Em 2007, os ocupantes começaram a sair, movimento que se encerrou em 2011 com Obama na presidência. A escala estatística das perdas é o que menos importa, diante de um tal absurdo: provavelmente esta foi a guerra mais fake, para usar o termo do momento, jamais feita. O Presidente George W. Bush e seus assessores mentiram obsessivamente para justificar a invasão e arrastaram um patético grupo de líderes mundiais conservadores nessa aventura, entre eles pelo menos um governante que se dizia liberal de esquerda, o Primeiro-Ministro inglês Tony Blair. Nunca ninguém achou nada que se assemelhasse à “arma de destruição em massa”: em compensação, a invasão preparou o terreno para a emergência do Exército Islâmico, o consórcio de grupos radicais que aterrorizou o Oriente Médio durante os anos que se seguiram.
Um desastre, em suma, possivelmente movido por ambições petrolíferas geo-estratégicas dos EUA. Brian De Palma não tem nada a ver com isso: cineasta bem sucedido, no mercado e na crítica, não hesitou quando recebeu a proposta para dar o seu recado, crítico naturalmente, de toda essa trapalhada. Ofereceram 5 milhões de dólares para a empreitada – nos padrões do diretor, produção independente – e mãos à obra. Escreveu o roteiro baseando-se no enredo de seu filme sobre a Guerra do Vietnam (“Pecados da Guerra”, de 1989), relato de estupro seguido de assassinato de uma jovem por soldados ocupantes. A palavra “Redacted ” é utilizada pelos militares e significa “editado”: tal uso teria começado em 1967, quando o Pentágono, pressionado pela Lei de Liberdade de Informação, divulgou partes “editadas” do chamado “Pentagon Papers” – a história está contada em “The Post – A Guerra Secreta”, dirigido por Steven Spielberg em 2017. Nas palavras de Brian, “a verdadeira história de nossa Guerra do Iraque foi editada pela mídia corporativa convencional”. A ideia originou-se em um fato real: Abeer Qassim Hamza al-Janabi, de 14 anos, foi estuprada, morta e queimada por tropas americanas em Mahmudiya, ao sul de Bagdá, em março de 2006. Seus pais e outro membro da família também foram mortos. Na Guerra do Vietnam, segundo o diretor, “vimos soldados caídos, vimos vietnamitas sofrendo…não vemos nada disso agora no Iraque…vemos bombas explodindo, mas onde elas caem? Quem eles matam?” A guerra, ou a espetacularização da guerra, mudou radicalmente na era internet. Espetáculo é simulação: como produzir a ficção com propósito documental? como veicular raiva, medo e repulsa na audiência anestesiada?
A solução, brilhante, foi construir uma linguagem que assimilasse os aparatos modernos de reprodutibilidade técnica: e gerar uma multifacetada colagem de pontos de vista, individuais – a grande novidade da internet, o “um para um” da comunicação – e coletivos, reportagens de TV (inclusive árabes) e afins. Na dramaturgia nervosa do check-point são várias as telas em ação: celulares, câmeras, monitores – só faltam mesmo as telas dos iraquianos, ocultas e invisíveis, que podem irromper quando menos se espera e despedaçar o corpo do sargento. Cada tela é um ponto de vista: misturando naturalismo brutal e teatralidade narcísica – “Redacted – Guerra Sem Cortes” nos convida a imergir em um mundo de simulacros, onde nenhum ser falante parece dispor de estabilidade psíquica suficiente para…um conflito tão assimétrico como a Guerra do Iraque. Não há eixo na câmera, não há campo-contracampo nos enquadramentos: o que surge ao nosso olhar é a pulsão de segurar a câmera leve e fagueira, os movimentos de captação guiados por uma membrana perceptiva sensível e pulsional – algo que definitivamente entrou na cultura pós-moderna (ou pós-espetáculo) e que dispõe, claro, de codificação adequada no cinema comercial. Ninguém se assusta com home movies inseridos nas narrativas: mas em um filme de home movies numa situação insana de guerra, pontuada por decapitações no Youtube e explosões cotidianas de violência extrema, a coisa é diferente; as reações dos espectadores desavisados podem sair do controle.
E saíram: a maioria da crítica americana se assustou com essa “aberração”: os mais extremados e patriotas profissionais abominaram. Um deputado, sintetizando a opinião de muitos, enviou carta ao Presidente da Motion Picture Association of America afirmando que o filme “retrata os militares americanos no Iraque como desajustados e criminosos incontroláveis… e ignora os muitos atos de heroísmo realizada por nossos soldados, fuzileiros navais, aviadores e marinheiros”. Na Europa, “Redacted – Guerra Sem Cortes” foi premiado no Festival de Veneza e considerado pela Cahiers du Cinema como o filme do ano em 2008. Nessa época de trânsito incessante entre telas, o filme de Brian de Palma atualizou, em última análise, a pulsão do olhar pós-internet no cinema. Mas as telas não param de reproduzir-se. Como disse recentemente o CEO da TikTok: “lançamos o app do TikTok para TV em 2020 na Europa. A ideia era levar a mesma experiência do TikTok no celular para o sofá da sala de estar”. Só resta aguardar a próxima tela.