Curta Paranagua 2024

Reality

Meu nome é Realidade

Por João Lanari Bo

Festival de Berlim 2023

Reality

Imagine-se uma personagem cujo nome desorienta o que se espera…de um nome, ao mesmo tempo que funciona como indicador do que vai acontecer nos 83 minutos de duração de um filme que se chama “Reality”? A personagem, cujo nome real é Reality Leigh Winner, é ela mesma expressão da realidade do que se passa na narrativa, construída como se fosse um reality show, ou seja: gênero de programa de televisão baseado na vida real, sempre que os acontecimentos nele retratados sejam fruto da realidade e os visados da história sejam pessoas reais e não personagens de um enredo ficcional.

Reality – é o seu nome de batismo – nasceu em 1991 no Texas, serviu na Força Aérea dos Estados Unidos e foi contratada pela Pluribus, pequena empresa que presta serviços para a poderosa NSA. Suas habilidades linguísticas são impressionantes: ela é fluente em farsi, língua falada no Irã, dari e pashto, os dois principais idiomas do Afeganistão.

Reality, porém, não é uma winner, vencedora: está mais para loser, perdedora, pelo menos nesse episódio bizarro da sua vida. “Reality” se passa em tempo real, fazendo jus ao título (e à personagem): os eventos cinematográficos acontecem simultaneamente com a experiência dos espectadores. Descrevem Reality voltando das compras e encontrando, em sua casa na cidade de Augusta, Georgia, dois agentes do FBI. Segue-se um diálogo estranhamente banal e amigável, mas insistente – aos dois somam-se meia dúzia de policiais, todos à paisana, calças da mesma cor, cáqui. Reality está de short jeans e blusa branca, estamos em junho, faz calor.

Falam da cachorra dela, resgatada de um canil onde ficou anos esquecida; e da gata, escondida debaixo da cama – Reality (Sydney Sweeney, excelente) preocupa-se com eventual fuga do animal. Conversam também sobre crossfit, levantamento de peso, aulas de yoga – ela orienta a prática ali perto – tudo isso no quintal da casa, singela como Reality. Ela revela as armas que possui, um AR 15 cor de rosa, pistolas. Em paralelo, os demais agentes começam a vasculhar o interior da residência, o FBI tem mandato de busca, e Reality parece não se surpreender.

Fotografia com luz chapada, edição oscilando entre nervosismo e calmaria, a tensão começa a crescer. O trio resolve ir para um quarto no fundo da casa, espaço vazio e claustrofóbico, sujo, desculpa-se ela. Os agentes passam para uma postura ligeiramente mais agressiva, insinuando que um importante documento confidencial vazou: alguém imprimiu o texto, dobrou a folha de papel e colocou no Correio. O destinatário foi o The Intercept, jornal online independente que se define como dedicado à responsabilização dos poderosos por meio de um jornalismo destemido e combativo.

Reality, até esse momento projetando inocência e incompreensão, se assusta. Ela agora tem um enorme problema à sua frente: o documento relatava a interferência russa nas eleições de 2016, cujo vencedor foi Donald Trump. A visita do FBI à casa de Reality Winner ocorreu em 3 de junho de 2017. O diálogo obviamente se intensifica, Reality confessa o vazamento – o ambiente intoxicado pela Fox News, uma campanha política carregada de baixarias, tudo aquilo bateu na sua consciência e ela resolveu protestar. Eu sei, sentimos raiva e perdemos o controle – contemporizou o agente mais graduado, enquanto colocava algemas na whistleblower.

Reality”, o filme, é mais do que um reality show: é um reality action, uma realidade em segundo grau que comanda os acontecimentos. Todas as falas do filme são extraídas da transcrição que o FBI tornou pública durante o processo que moveu contra Reality – o que os atores dizem é exatamente, palavra por palavra, o que seus homólogos da vida real falaram, seguindo a cadência e o ritmo dos diálogos. A diretora Tina Satter, que já havia utilizado o texto em produção teatral, teve a feliz ideia de reproduzir a transcrição tal como ela foi usada pelo FBI – como índice de realidade.

A realidade, como diz a sabedoria popular, é sempre um limite inapreensível – algo que escapa aos nossos desígnios. Reality Winner admitiu sua culpa, pegou cinco anos de cadeia (cumpriu quatro) – e tudo isso por uma negligência inacreditável (e inaceitável) do The Intercept!

Eu não fui a primeira fonte que eles queimaram e definitivamente não fui a última – duas outras pessoas cumpriram pena de prisão pelo desleixo deles, disse em entrevista à revista Rolling Stone.

Sim, esta é a realidade – o Intercept tomou a decisão de enviar cópia do documento para o NSA sem se dar conta que havia uma marca que permitia sua identificação, levando o FBI chegar até Reality.

Eu sabia que era segredo, disse ela. Mas eu também sabia que tinha jurado servir o povo americano e, naquele momento, parecia que o público estava sendo ludibriado.

4 Nota do Crítico 5 1

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