Que os Olhos Ruins não te Enxerguem
Cheguei para Sambar - A Periferia nas Telas
Por Roberta Mathias
Durante o Festival do Rio 2019
“Que os Olhos Ruins não te Enxerguem” integrante da Mostra Geração do Festival do Rio 2019 fala principalmente sobre visibilidade. Dirigido por Roberto Maty e Thabata Vecchio, do coletivo Lentes Periféricas, o filme logo em sua abertura agradece a outros coletivos independentes de São Paulo. Como segunda maior metrópole da América Latina – atrás apenas da Cidade do México – ela concentra tudo de bom e de ruim que esse título pode oferecer. A pior parte, como sabemos, fica para aqueles que não moram na região central e elitizada recheada de equipamentos de saúde e culturais. Mas, não é exatamente sobre isso que o filme trata.
O coletivo se propõe a “criar novos imaginários poéticos, reconstruir as imagens periféricas”, como explicitam na apresentação da sessão de abertura do MAM. Apostam, então, na potência e, não na falta. Ao trazer para as telas de cinema uma série de corpos periféricos e LGBTQI+ são a diversidade e a visibilidade que estão em voga. Têm consciência de sua função social enquanto coletivo e compreendem que, através da arte, podem fazer política.
São Paulo pode ser uma cidade dura. Ainda que possua uma série de transportes públicos, nem sempre a distribuição está equiparada pelas “quebradas” da cidade. O corpo periférico é aquele que se move para chegar até espaços menos violentos. Mas, nem por isso, escapa da rejeição. Alguns entrevistados relatam que sofreram preconceito e assédio ali mesmo, na região que concentra a maior parte dos bares e boates gays. Não à toa o beijaço ocorrido há alguns anos se deu no Shopping Frei Caneca. Se é por aí, na região da Rua Augusta, nos bairros da Consolação e Bela Vista, que se sentem mais livres para se montarem, andarem de mãos dadas ou fazer carão, nem sempre essas manifestações são bem aceitas.
“Eu já fui quem eles queriam, agora eu decidi ser eu”. Talvez essa seja uma das afirmações mais fortes de “Que os Olhos Ruins não te Enxerguem”. Esses corpos podem ser rechaçados pelos mais diversos motivos, mas agora eles desejam se afirmar em toda sua completude. Em geral, homossexuais, periféricos e pretos. Até com relação à sua identidade racial, uma nova geração vem retraçando suas origens. O que é o correto? Para quem serve esse correto? Ao compreenderem que seguir aos padrões só os afastava de seus próprios desejos, esses corpos se rebelam através da ocupação de espaços. A trans. Milena diz que a arte drag é um refúgio para ela, mas talvez – porque não posso tomar sua palavra como minha – é justamente ao se travestir e ao transitar pela cidade que ela se imponha em sua máxima potência.
“Eles me percebem, eles me perseguem, eles nos perseguem”. Essa outra frase, extraída da participação de um casal lésbico deflagra o que há de mais terrível na invisibilidade desses corpos. Quando são percebidos, é sempre com uma reação positiva em termos de ativo, mas negativa em termos de aceitação do outro lado – branco, centralizado e rico. Podemos entender quase como uma fricção entre duas realidades. A tensão sempre existiu. Em alguns momentos, é preciso extrapolar para fugir dessa invisibilidade que não é totalmente invisível. Quase como espectro esses corpos conseguem resistir em algumas regiões da cidade. O que eles exigem é uma existência que não os empurre para dentro do armário.
Não mais se esquivar. Não mais se encolher. Não mais pedir desculpas por uma existência que não fere em nada a liberdade do outro. Não há mais como negar a existência de uma grande parte de periféricos que querem ter acesso a experiências e saberes. Que querem ser. Ao trazer uma diversidade dentro do espectro LGBTQI+ o filme mostra que temos muito o que aprender com as quebradas. São esses corpos que vivem a cidade em sua forma mais intensa. Não dá para fingir que São Paulo vive só de Jardins e Itaim Bibi. Que vida sem graça seria essa…
“Seja você quem for, se revele sempre em poesia”, escreve outro entrevistado de “Que os Olhos Ruins não te Enxerguem”. A poesia é feita com e através de nossas experiências. É sempre bom trazer o novo, o diferente, o que indaga para dentro de nossas poesias cotidianas. São Paulo já anda precisando de mais poesia há algum tempo. O país, como um todo, também. Escutemos essas vozes que gritam há séculos. O que eles têm a nos apresentar é um manifesto feito com o próprio corpo. Talvez seja bonita, talvez seja possível a convivência entre esses manifestos.