Q: No Olho da Tempestade
QAnon: o labirinto sem centro
Por João Lanari Bo
HBO
A internet é indiscutivelmente o maior meio de comunicação social do nosso tempo. É um ambiente ao mesmo tempo aberto e pulverizado, em que qualquer um pode se expressar, mas ao mesmo tempo fechado e oligopolizado, em que apenas poucas empresas controlam as regras econômicas e os algoritmos de engajamento e conexão entre as pessoas. As interações entre pontos dispersos no universo cibernético – ou melhor, multiverso – crescem exponencialmente. “Q: No Olho da Tempestade”, série documental veiculada pela HBO, toca num dos nervos expostos dessa nebulosa, o QAnon, que pode ser definido como um movimento de pessoas que interagem evitando qualquer interpretação de um conjunto comum de fatos – e optam em favor da criação de universos fechados de interpretações que se reforçam mutuamente. Em termos mais simples, pessoas que cultivam teorias conspiratórias baseadas em fatos sem comprovação como forma de organizar o real que as circunda. Cullen Hoback, o realizador dessa façanha, começou a seguir o movimento QAnon em 2018, checando alguns interlocutores por trás do imageboard 8chan, onde as mensagens de “Q” foram postadas: com um estilo direto e empático, aproximou-se da suposta origem do movimento e de seus prováveis instigadores. A invasão do Capitólio, o Congresso norte-americano, em 6 de janeiro de 2021, foi o ápice do QAnon e também sua (aparente) implosão: o FBI prendeu pelo menos 20 adeptos autoidentificados do QAnon que participaram da invasão. Em fevereiro, Hoback concluiu a série.
Imageboard: fórum de discussão que se baseia na postagem de imagens e texto, geralmente de forma anônima. Anonimato e teorias conspiratórias são velhos conhecidos da humanidade. A novidade agora está na fúria incontrolável em que as narrativas pessoais circulam, na capacidade de “muitos falarem para muitos”, na relativização e diminuição do papel centralizador e ordenador que os “donos da informação” — seja o oligopólio da mídia, seja o discurso dos representantes políticos — se arrogam. A formação da subjetividade política das pessoas que se relacionam digitalmente entre si e com tudo mais aponta para outra dimensão do que entendemos como “vida política”; pela disponibilidade que têm de construir as próprias histórias e vivências, e, portanto, pela facilidade de passar ao largo das narrativas tradicionais — o “um para muitos” – e ingressar no mundo pós-internet, onde prevalece, para o bem e para o mal, a comunicação “um para um”.
O QAnon ganhou tração no final de 2017 acusando liberais de Hollywood, políticos democratas e outros menos votados de canibalismo, pedofilia e culto a Satanás: além disso, imputavam a essa turma de, nas horas vagas, conspirar contra Donald Trump. O método era lançar “Q drops” no 8chan, site que abriga grupos de white supremacism, antissemitismo e defensores de fuzilamentos em massa, para transmitir suas mensagens. Hoback foi atrás de seguidores dispostos a falar: eleitores frustrados de Obama, famílias divididas por conta da adesão de alguém, geralmente os pais, ao círculo; até chegar ao provável núcleo, Frederick Brennan, fundador do 8chan, e a dupla Jim e Ron Watkins, pai e filho, que assumiu o controle do 8chan em 2016. A série tem 6 episódios, seis horas de duração, e muita gente criticou o vai e vem de Hoback em torno desses personagens, engolindo mentiras e fabulações para, no limite, criar laços de amizade com os pérfidos internautas. De fato, pode ser custoso encarar as seis horas, mas a paciência do realizador (e do espectador) é recompensada no final: misturando sujeito (o cineasta e sua microcâmera) e objeto (o inacreditável trio Brennan e os Watkins), “Q: No Olho da Tempestade” consegue reproduzir aos trancos e barrancos o labirinto sem centro em que se move o imaginário doentio dos novos protagonistas da internet, um conjunto que vai desde o simplório desejo de ganhar dinheiro – são, afinal de contas, empresários “inovadores” – até o objetivo ideológico de sabotar políticos e simpatizantes do Partido Democrata, taxados, claro, de “comunistas”.
Quem, afinal, seria “Q”, o misterioso mentor do QAnon? Essa loucura toda tinha (ou tem) um centro? Brennan e os Watkins, os usual suspects, arrumaram uma briga nas Filipinas, para onde tinha ido Jim Watkins, e a coisa ficou mais confusa ainda. Alguém sugeriu que o próprio Trump seria “Q”: ele realmente deixou pistas no ar durante os anos que ocupou massivamente as redes sociais e, nas horas vagas, a Presidência. Cullen Hoback manteve o sangue frio, como se soubesse que a demência iria atingir o ponto de ebulição no patético episódio do Capitólio. No caminho, “Q: No Olho da Tempestade” rastreia algumas pontas de iceberg insanas que foram alimentadas pelo QAnon, como o Pizzagate – em 2016 um homem entrou atirando numa pizzaria, em Washington, e em 2019 outro incendiou o local. De acordo com “Q”, Hillary Clinton e assessores comandavam uma rede de pedofilia e tráfico sexual no porão do estabelecimento.
Alguns observadores crentes no positivismo da ciência moral afirmam que o QAnon “evaporou”, pois inúmeras contas de adeptos nas principais redes sociais foram banidas (inclusive do ex-Presidente Trump) – e as redes sobressalentes não têm o mesmo poder de fogo. A hipótese já começou, ela sim, a evaporar: o FBI continua a alertar o Congresso que novos atos violentos podem ocorrer, uma vez que as ações prometidas por “Q” não se materializaram e militantes da conspiração almejam controlar a direção do movimento. Agregue-se, diz também o FBI, que outra dupla de usual suspects, China e Rússia, não teria cessado de fomentar discórdias no povo americano através de ciberataques, muitos deles utilizando-se do QAnon: a hipótese é plausível, como deve ser o revés, ciberataques dos EUA contra esses países. A segunda temporada da série promete.