Precisamos Falar
De pai para filho
Por Júlia Wehmuth Roth
Assistido durante o Festival do Rio 2024
Cada geração enxerga o mundo de uma forma diferente, mesmo quando os filhos seguem o exemplo dos pais e fazem de uma forma particular ao seu universo, o que torna isso interessante é ver a perspectiva de pessoas de outras gerações e suas tentativas de diálogos por meio da tela grande do cinema, um lugar “seguro” de recepção passiva. Um desses exemplos está em “Precisamos falar”, dos diretores Rebeca Diniz e Pedro Waddington, exibido no Festival do Rio 2024, longa-metragem, baseado no livro “O Jantar” de Herman Koch, que denuncia problemas estruturais da sociedade ao mesmo tempo que mergulha na incorporação da Geração Z, tentando explicar o quê e o porquê esses seres sentem (sentimos) em relação ao mundo.
Podemos salientar também, que, logo no início, “Precisamos falar” exibe atos de violência racista e xenofóbica, apresentando acontecimentos na perspectiva da câmera de um celular. Outros Aparelhos eletrônicos são destacados com constância, por meio de toques de telefone que permanecem soando no meio de diálogos, e uma trilha sonora que nos remete ao zumbido de uma ligação insistente, que não aceita ser ignorada, um “Buzz…Buzz atiçador da inquietude. Em nenhum momento essa sensação some (às vezes chega a ser restaurada), mesmo quando diminui de intensidade, permanece como uma impressão permanente, reciclando nossa curiosidade em relação a iminente consequência das ações dos personagens. Inclusive, essa cena inicial é frequentemente reprisada, muitas vezes introduzida em montagens com propósitos muito perspicazes. Só que sua frequência ultrapassa o limite do ideal, sendo utilizada para ilustrar o estado mental dos personagens e nos resgatar a ânsia e a expectativa, quando a própria narrativa não consegue fazer isso sozinha. Adicionado a isso, a aproximação com o imediatismo da internet também replica sensações dessa ansiedade conduzida. Seja por meio de movimentos de câmera semelhantes aos que vemos em vídeos de redes sociais, como Zoom in, Zoom out, desfoque e viradas bruscas. Seja pelas reflexões em relação as interações dos jovens com o mundo virtual, e como isso afeta a vida real e as impressões que um deixa no outro. Vemos isso com clareza, em momentos em que as personagens expõem suas atitudes por meio de vídeos dos acontecimentos, mesmo sendo coisas “ilícitas”.
Outra camada importante: as fortes reflexões morais e críticas sociais do filme. Em “Precisamos falar”, os pais dos adolescentes tem visões diferentes de moral, ética política etc. E é interessante observar como mesmo se odiando, mesmo mentindo, essas personagens permanecem unidas e cúmplices orbitando em volta uns dos outros, pois são família. Parafraseando uma frase de Paulo, interpretado por Alexandre Nero: “Se a mentira for com amor, então tudo bem”. Dessa forma, facilmente enxergamos uma representação da polaridade do mundo e uma leve referência da forma como tudo fica distorcido se falado com jeitinho. Nos cabe ressaltar ainda que as opiniões desses pais afetam as atitudes dos filhos. “Precisamos falar” é uma denúncia de como o preconceito é frequentemente passado de geração em geração, mais do que isso, mostra a forma como a sociedade atua e como normaliza a imunidade dos ricos. É, se pudéssemos reflexionar mais de outras camadas sociais afetadas pelas atitudes dessas pessoas, acredito realmente que essa obra teria ainda mais potência do que já carrega.
Além disso, algumas personagens também soaram pouco exploradas e/ou se perderam ao longo do roteiro, principalmente a figura da mãe de Michel, Sandra (interpretada por Marjorie Estiano), que é inicialmente apresentada como uma personagem marcante no início, com impressões e dilemas de moral/lealdade, mas que rapidamente se agarra a camada do amor, de forma que mais para o final do filme tudo vira frases prontas para justificar sua atitude conivente. Isso acaba por gerar uma personagem genérica, de postura satírica. O filme em muitos momentos parece querer justamente nos mostrar como certas atitudes são facilmente mascaradas e, a inanição, uma forma de violência, sempre lembrando que nada é o que parece. Assim outro personagem que merecia mais camadas é o Henrique (Interpretado por Guilherme Cabral), que parecia apresentar uma opinião e modo de lidar com o mundo desde o início do filme, mas depois nos é apresentado uma mudança sua com novas opiniões e atitudes, que não apresentam origens ou motivos, de forma que sua verdadeira face nunca fica clara, nem mesmo indiretamente.
Em conclusão, “Precisamos falar” é um filme importante e necessário para a sociedade brasileira, em muitos aspectos mencionados anteriormente. E nesse assunto o personagem Jefferson (Cauê Campos) foi o que teve mais camadas, e, portanto, mais realista. Sua forma de falar, pensar e agir imprime o verdadeiro comportamento de um jovem confuso e com sonhos de menino, que acha que precisa carregar o peso de um mundo doente sozinho. Sendo ele mesmo um elo importante entre a família com as outras camadas sociais. “Precisamos falar” é um filme que tem muito a dizer e feito para um público que precisa ouvir.