Porque Temos Esperança
Sobre a crença no possível
Por Fabricio Duque
Festival do Rio 2014
O cinema é arte mágica por permitir formas, conduções narrativas e estímulos emocionais. Todo e qualquer espectador, ainda que não queira, é convidado expandir o olhar e perceber a pluralidade e tipos de personagens. A realizadora, assumida e essencialmente documentarista, Susanna Lira imprime uma característica especial: contar uma história por sua orgânica espontaneidade e com o tempero da crença do final feliz continuado. É um cinema autoral em seu nascimento e vivo em sua construção. O que se vê é o momento, dotado de subjetividade e pessoalidade.
Assim, nós podemos contemplar a vida como ela é, ainda que seja encenada, visto que todo e qualquer ser humano projeta um novo eu quando a luz do câmera é ligada. Cada vez se comprova mais que um documentário não demonstra totalmente a verdade e sim um querer inconsciente do que se pretende ser. No documentário “Porque Temos Esperança”, suas personagens preocupam-se com a imagem, como por exemplo, o filho da protagonista daqui, Marli Márcia, que serve de elo de ligação ao contexto da trama e representa a mãe de todas as mães.
Tudo em “Porque Temos Esperança” é uma homenagem-registro de alguém que faz o bem sem olhar a quem e só o faz porque precisa fazer. Porque se não fizer, a vida não representa mais sentido. Marli, Presidente da Associação Pernambucana de Mães Solteiras, que há vinte e dois anos divide o coração e a maternidade para ajudar especialmente os filhos a “não crescer com o buraco vazio na Certidão de Nascimento”, e que existe pelo confronto entre a necessidade absoluta do fazer e passional ansiedade “sem equilíbrio emocional”. Sim, essa união é seu diferencial: seguir sempre a essência do sentir, como naquelas reuniões de família.
O longa-metragem, embalado por uma sensorial trilha sonora à moda etérea esperançosa da banda islandesa Sigur Rós (da mesma terrinha da cantora Bjork), retrata a vida como ela é. De uma mãe que optou por não cuidar só de um filho e não perdeu o foco quando o “progenitor” “abandonou” o próprio filho ainda pequeno. Susanna tece um cinema popular, emocional, aproveitando a oportunidade do momento quase caseiro. É um filme sobre novas famílias que transcendem o biológico (“Pai é quem cria”, repete-se a máxima já instaurada). Um novo conceito de pai e mãe. Uma realidade calçada no que se pode ter, com destaque à paternidade do ambiente das penitenciárias. E na resignação plena do aceitar.
“Porque Temos Esperança” resgata a tradição do vínculo familiar, a fim de fornecer base e estímulo impeditivo à vida criminal (“A ausência do núcleo familiar leva ao crime”, diz-se). Marli frequenta os ambientes e com calma escuta dúvidas e porquês dos “pais ausentes”. “Quem paga o preço são os filhos”, rebate-se. Não sei se é comum no interior de Recife, os guardas se comportarem com perspicácia e humanidade quanto os direitos dos detentos (“ressocialização invertida”, ”desconstruir o processo” e “Prisão é consequência da sociedade”) com ou sem tatuagens, músicas de Rap e crenças religiosas). Também não se sabe se é encenação à câmera ou verdade verdadeira. Mas a percepção que se tem é a de que lá o sistema parece funcionar, mesmo que seus integrantes sociais expressem uma paralisia em desejar algo. Um adormecimento em achar que pode “sair mais coisa” de seus futuros. É então imprescindível a figura de Marli, a Justiça que vai até eles. Para mostrar que sim é possível. Que todos merecem uma “felicidade extasiante” (como foi dito em “Madame Satã”, de Karim Aïnouz) e que “mágoas” podem ser amenizadas. O que eles almejam? Quais são seus sonhos?
E um segundo então é inserido. Se antes era como se eles já tivessem desistido de tudo (são praticamente obrigados a nunca pensar sozinhos), a reação-expressão é modificada em um ambiente externo, junto com o filho (“pensativo e estranhando a situação”), por exemplo. Há a volta da felicidade desmedida, que religa a nostalgia de se estar em casa sem preocupações. Susanna consegue com maestria captar esse momento. Essa volta. Esse sentimento pungente de inocência perdida. De vida antes do precisar viver. Como a de um domingo à tarde com visita de tias como aroma do bolo e do café com raios de sol prestes a se esconder, mas ainda calorentos. “Porque Temos Esperança” é isso, junto com a sensação daquele vídeo-registro em VHS.
O documentário é sobre o básico da existência. “Seja o herói do seu filho”. Sobre “circustância da vida”, sobre “faltar carinho e sobrar culpa”. É uma missão diária e ininterrupta. Um carma, mas também uma salvação ao espírito da paz da consciência. Nós nos levamos a corroborar a ideia de que é apenas o “sofrimento ajuda a refletir e ser outra pessoa”. Ou pela religião evangélica. Não deveria ser assim, mas é desse jeito que a engrenagem humana monta suas peças e gambiarras. “Todo mal traz benefícios”, filosofa-se. Com capoeiras, afetos encenados, jogos de futebol, “Porque Temos Esperança”, que participou do edital A Hora e Agora da TV Câmara, mostra valor do social e que indivíduo só é ajudado por outro ser humano. A frase do início “Nossa rejeição ao que parece não ter jeito, é o que chamamos de esperança”, do filósofo Mario Sergio Cortella, direciona com Spoiler toda a experiência que se sucederá. E que a esperança é sim a última que morre.